29 de out. de 2010
25 de out. de 2010
Ambientalismo
Qual o Médico?
Em parceria com o blog Plantas, Saúde e Ervas , o Utopia desenvolveu uma lista de médicos e suas respectivas funções, a fim de facilitar na procura de seu especialista.
Veja AQUI a imagem ampliada.
Veja AQUI a imagem ampliada.
23 de out. de 2010
Poluição, Energia e Dia-a-dia
A poluição, seja qual for, está sendo cada vez mais agravada a cada década. Houve um tempo em que não se pensava no meio ambiente - tanto quanto, teoricamente, se pensa hoje - e indústrias e outros faziam queimadas, soltando CO2 na atmosfera.
Soluções para um ambiente não tão poluido, hoje, é algo que deve-se pensar muito complexamente. Afinal, é um círculo: para resolver um problema, tem que resolver o outro que será gerado depois.
Pensando somente no Brasil. Há poluições de diversos tipos, desde fontes de energia elétrica até com os nossos automóveis. São tantas as coisas que se encontram no nosso dia-a-dia, que parece impossível reverter um problema de tão grande porte em nosso país.
A começar pela região de São Paulo.
Essa é uma imagem de uma das estradas que ligam São Paulo a regiões de interior. Milhões de carros passam pela cidade de São Paulo todos os dias. E, como o cidadão tem o direito de adquirir seu veículo, supondo que a cada ano alguém faça 18 anos e adquira o seu próprio, esses números só tendem a aumentar.
O Brasil tenta atingir o nível de diminuição de poluição em volta de 5% até 2012, aproximadamente. Mas como fazer isso, se é algo tão complicado?
Filtros nos escapamentos dos carros, nas indústrias - ao liberar gases nocivos ao meio-ambiente -, a proibição do CFC, e entre outras pequenas soluções foram acolhidas para alcançar o número de 5,8%, mais ou menos.
Já as soluções mais significativas precisam ser aprovadas por representantes, engenheiros, ministros, cientistas... Começando com a produção de energia.
As usinas hidrelétricas são o modo de energia mais sustentáveis no Brasil (a principal, de Itaipu). Constroe-se uma barragem que represa a água, formando um tipo de cachoeira. A água passa em pequenas saídas na barragem, fazendo com que as turbinas se movimentem. Esse movimento das turbinas faz com que produza-se energia - que é convertida em energia elétrica. Hidrelétrica é uma forma limpa de produzir energia.
Porém, o Brasil conta com a ajuda das usinas Termelétricas e Nucleares (em menor quantidade, no caso).
Nas Termelétricas, há a queima de combustíveis fósseis para produzir a energia. Isso definitivamente danifica o meio-ambiente. Ainda assim, é uma forma barata que traz energia elétrica.
Enquanto as nucleares contam com a reação nuclear dos átomos de urânio - que são uma fonte de energia não-renovável - deixando ainda o lixo nuclear. É um beco sem sáida a poluição.
Entretanto, há a energia eólica. Essa energia conta apenas com a ajuda do vento para movimentar turbinas em grandes espaços abertos. Mas o Brasil não tem esses grandes espaços abertos que recebam tanto vento para poder sustentar o país.
Veja aqui fatores positivos e negativos das energias Nuclear, Termelétrica e Hidrelétrica.
Definitivamente, o Brasil deve pensar em novas fontes de energia não poluentes.
21 de out. de 2010
Toalha Branca, o Soneto
Sobre uma toalha branca
os mortos comemoram a minha chegada.
Uma estranha visão me atinge fortemente;
o contraste entre o negro e o alvo.
E agora, sob uma toalha branca eu atinjo o meu limite
entre os mundos.
E enquanto isso,
os vivos questionam lembranças.
Entretanto,
a única coisa a ser perguntada é:
'O que estou fazendo aqui?'
Do que me lembro é a lembrança.
E a lembrança é
uma toalha branca.
Por BBC e IARF
7 de out. de 2010
Contos...
A menina dos fósforos
"Estava tão frio! A neve não parava de cair e a noite se aproximava. Aquela era a última noite de Dezembro, véspera do dia de Ano Novo. Perdida no meio do frio intenso e da escuridão, uma pobre garotinha seguia pela rua fora, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É certo que ao sair de casa trazia um par de chinelos, mas não duraram muito tempo, porque eram uns chinelos que já tinham pertencido à mãe, e ficavam-lhe tão grandes, que a menina os perdeu quando teve de atravessar a rua a correr para fugir de um trem. Um dos chinelos desapareceu no meio da neve, e o outro foi apanhado por um garoto que o levou, pensando fazer dele um berço para a irmã mais nova brincar.
Por isso, a garotinha seguia com os pés descalços e já roxos de frio; levava no avental uma quantidade de fósforos, e estendia um maço deles a toda a gente que passava, apregoando: — Quem compra fósforos bons e baratos? — Mas o dia tinha-lhe corrido mal. Ninguém comprara os fósforos, e, portanto, ela ainda não conseguira ganhar um tostão. Sentia fome e frio, e estava com a cara pálida e as faces encovadas. Pobre menininha! Os flocos de neve caíam-lhe sobre os cabelos compridos e loiros, que se encaracolavam graciosamente em volta do pescoço magrinho; mas ela nem pensava nos seus cabelos encaracolados. Através das janelas, as luzes vivas e o cheiro da carne assada chegavam à rua, porque era véspera de Ano Novo. Nisso, sim, é que ela pensava.
Sentou-se no chão e encolheu-se no canto de um beco. Sentia cada vez mais frio, mas não tinha coragem de voltar para casa, porque não vendera um único maço de fósforos, e não podia apresentar nem uma moeda, e o pai era capaz de lhe bater. E afinal, em casa também não havia calor. A família morava numa água-furtada, e o vento metia-se pelos buracos das telhas, apesar de terem tapado com farrapos e palha as fendas maiores. Tinha as mãos quase paralisadas com o frio. Ah, como o calorzinho de um fósforo aceso lhe faria bem! Se ela tirasse um, um só, do maço, e o acendesse na parede para aquecer os dedos! Pegou num fósforo e: Fcht!, a chama espirrou e o fósforo começou a arder! Parecia a chama quente e viva de uma candeia, quando a menina a tapou com a mão. Mas, que luz era aquela? A menina julgou que estava sentada em frente de um fogão de sala cheio de ferros rendilhados, com um guarda-fogo de cobre reluzente. O lume ardia com uma chama tão intensa, e dava um calor tão bom! Mas, o que se passava? A menina estendia já os pés para se aquecer, quando a chama se apagou e o fogão desapareceu. E viu que estava sentada sobre a neve, com a ponta do fósforo queimado na mão.
Riscou outro fósforo, que se acendeu e brilhou, e o lugar em que a luz batia na parede tornou-se transparente como tule. E a menininha viu o interior de uma sala de jantar onde a mesa estava coberta por uma toalha branca, resplandecente de louças finas, e mesmo no meio da mesa havia um ganso assado, com recheio de ameixas e pure de batata, que fumegava, espalhando um cheiro apetitoso. Mas, que surpresa e que alegria! De repente, o ganso saltou da travessa e rolou para o chão, com o garfo e a faca espetados nas costas, até junto da garotinha. O fósforo apagou-se, e a pobre menina só viu na sua frente a parede negra e fria.
E acendeu um terceiro fósforo. Imediatamente se encontrou ajoelhada debaixo de uma enorme árvore de Natal. Era ainda maior e mais rica do que outra que tinha visto no último Natal, através da porta envidraçada, em casa de um rico comerciante. Milhares de velinhas ardiam nos ramos verdes, e figuras de todas as cores, como as que enfeitam as vitrines das lojas, pareciam sorrir para ela. A menina levantou ambas as mãos para a árvore, mas o fósforo apagou-se, e todas as velas de Natal começaram a subir, a subir, e ela percebeu então que eram apenas as estrelas a brilhar no céu. Uma estrela maior do que as outras desceu em direcção à terra, deixando atrás de si um comprido rasto de luz.
"Foi alguém que morreu", pensou para consigo a menina; porque a avó, a única pessoa que tinha sido boa para ela, mas que já não era viva, dizia-lhe muita vez:"Quando vires uma estrela cadente, é uma alma que vai a caminho do céu"
Esfregou ainda mais outro fósforo na parede: fez-se uma grande luz, e no meio apareceu a avó, de pé, com uma expressão muito suave, cheia de felicidade!
— Avó! — gritou a menina — leva-me contigo! Quando este fósforo se apagar, eu sei que já não estarás aqui. Vais desaparecer como o fogão de sala, como o ganso assado, e como a árvore de Natal, tão linda.
Riscou imediatamente o punhado de fósforos que restava daquele maço, porque queria que a avó continuasse junto dela, e os fósforos espalharam em redor uma luz tão brilhante como se fosse dia. Nunca a avó lhe parecera tão alta nem tão bonita. Tomou a neta nos braços e, soltando os pés da terra, no meio daquele resplendor, voaram ambas tão alto, tão alto, que já não podiam sentir frio, nem fome, nem desgostos, porque tinham chegado ao reino de Deus.
Mas ali, naquele canto, junto do portal, quando rompeu a manhã gelada, estava caída uma rapariguinha, com as faces roxas, um sorriso nos lábios… morta de frio, na última noite do ano. O dia de Ano Novo nasceu, indiferente ao pequenino cadáver, que ainda tinha no regaço um punhado de fósforos. — Coitadinha, parece que tentou aquecer-se! — exclamou alguém. Mas nunca ninguém soube quantas coisas lindas a menina viu à luz dos fósforos, nem o brilho com que entrou, na companhia da avó, no Ano Novo."
Hans Christian Andersen.
Veja AQUI, a Menina dos Fósforos de Jean Renoir, 1928.
4 de out. de 2010
Erika Spencer - Eterno
Este livro narra a história de Gabrielle (Aimeé). A princípio, uma francesa do século XVII, que se apaixonou por um estranho, à primeira vista e sob uma situação inusitada. Com o tempo foi percebendo que apesar de misterioso, ele era algo bem maior do que poderia imaginar. Só não poderia prever se seria uma benção, ou um castigo tê-lo encontrado, já que se tratava de um vampiro.
Após uma trágica e dolorosa morte, ela deixou o mundo de seu amado, prometendo retornar um dia.
Séculos se passaram. Gabrielle é agora a jovem jornalista Aimeé. Aspirante a uma vaga disputada na Redação de seu jornal, foi em busca de uma entrevista que iria enriquecer seu artigo sobre a história da França, quando encontrou o famoso professor da área, Edmond Laforet.
O reencontro trouxe lembranças de outra vida para Aimeé. Algo inexplicável para ela, até então. Logo, Edmond, se deu conta de que falava com a sua Gabrielle de outrora. A partir daquele momento, o romance torna-se impossível de não se concretizar mais uma vez, apesar da jornalista ser comprometida em sua presente vida.
Após descobertas assustadoras, fatos inesperados, assassinatos e revelações perigosas do passado, os dois finalmente se reconciliam com a ajuda de Agnes, amiga de longas datas do casal.
Quando tudo parecia seguir um rumo tranqüilo na vida dos jovens amantes, a morte veio mais uma vez e separou-os, mas foi Aimeé quem precisou buscar um motivo forte para permanecer na Terra: sua filha, Marie.
Alguns anos depois, mãe e filha, agora vivendo na Itália, na cidade de Florença, se deparam com um enigmático pintor, que chamou a atenção das duas por suas obras peculiares. Inclusive o próprio retrato de uma delas!
Sem entender como aquilo poderia ser possível, já que nunca havia visto aquele artista antes, Aimeé convidou o jovem italiano para que fizesse um retrato seu, pessoalmente. Quando percebeu que era o seu falecido marido reencarnado naquele artista, iniciou-se uma forte atração entre ambos, desencadeando uma tórrida história de amor novamente.
Apesar de vários desencontros, perseguições e obstáculos para ambas as partes, o casal mais uma vez precisou ludibriar seu destino para provar para si mesmos que o amor pode vencer carmas terrenos e espirituais.
Uma narrativa dividida em três diferentes épocas, mas com os mesmos personagens, em vidas distintas. Encarnações que perpetuam uma mesma história de amor, sangue, vingança e seres ocultos.
- Há muito mais mistérios a serem revelados que até mesmo a própria imaginação humana não alcança!
Erika Spencer lançou agora seu novíssimo livro Eterno, um romance cheio de conflitos e que prende a atenção do leitor... ao longo da história inteira.
Está interessado? Leia aqui a primeira parte da história!
Ele pode ser encontrado para a venda aqui! O preço é sujeito a alterações.
Aproveite!
Primeira Parte - Eterno, Erika Spencer
CAPÍTULO 1
França – Versalhes – 15 de dezembro de 1687
Chorei e gritei por liberdade, mas de nada adiantou dentro daquele lugar úmido e sombrio, eu desesperadamente pensava em Edmond e em nosso filho que jamais nasceria. Tive medo da morte como nunca havia sentido antes. As horas de horror que presenciei enquanto estava encerrada naquele lugar terrível foram as piores possíveis, mas o meu corpo já estava muito frágil da violência que sofri e quase não tinha mais ânimo para gritar por ninguém.
- O que eu fiz para essas pessoas? – dizia-me repetidas vezes - Por que o meu erro, ou pecado - como me acusaram – foi considerado tão ferino e alarmante assim? A felicidade, para eles, deveria ser considerada algo muito atroz, luxurioso, indigno... Tudo que com certeza não se parecia com o que Edmond e eu estávamos vivendo. Ah, eu estava tão feliz! Queria tanto ter esse filho! – lamentava, em prantos - Meu Deus, por favor, não me deixe aqui! O que fiz para merecer isso? Foi por me entregar ao assassino de meu marido? Perdoe-me, Senhor, mas não deixe que meu bebê pague por minha culpa!
Eu mesma já tinha presenciado a morte de algumas mulheres, e até homens, sob a acusação de bruxaria, ou incitação ao paganismo. Achava um absurdo tais castigos, mas de certa forma, acreditava que podia ter alguma aprovação divina o que faziam - em nome da igreja - pois não tinha noção de como eram vãs e evasivas as acusações. Podia sentir, naquele momento, dentro de minha alma, a dor e a angustia das inocentes que eram assassinadas. Algumas, queimadas vivas, outras, enforcadas. Muitas das mulheres que foram covardemente perseguidas, provavelmente, não tinham praticado atos de feitiçaria e leviandade argüidos. Algumas foram heroínas por não demonstrarem auto-piedade; outras bradaram por clemência, mas para quase nenhuma das acusadas havia absolvição.
O frio, a fome, a sede e os infortúnios dos ferimentos eram determinantes para o meu desespero. Pelo natural instinto de sobrevivência, eu lutei até minhas últimas forças para tentar escapar. Por horas, olhava os tijolos escuros e sujos que me rodeavam e esperava o meu esgotamento. Outras vezes, me enchia de falsas esperanças e continuava a chamar por Edmond. Mas ele não me ouvia. Ninguém me escutava! Só havia o silêncio pela fresta de luz que me restava enxergar o mundo lá fora. A sensação de impotência diante do próprio desejo de morrer rapidamente, já que não poderia ser salva, era o que me sobrava. O silêncio e o vazio daquele lugar imundo eram apavorantes. Cheguei a acreditar que estava sendo severamente punida por forças celestiais, mas, apesar de tudo, em nenhum momento me arrependi do que havia vivido até então.
Caída ao chão, coberto por lodo e insetos, após dois dias de confinamento, fechei os olhos e rezei para que a morte me levasse logo consigo; e para que Deus tivesse compaixão do meu sofrimento. Não tinha mais expectativa que me encontrassem naquele lugar. Após tantas horas de abstinência, sede e cansaço, sentia que minha vida estava finalmente se esvaindo. Passei as mãos sobre o meu ventre, já bastante volumoso, e pude sentir pela última vez o meu bebê se mexer. Embora ele tivesse o sangue de alguém muito especial, ainda necessitava de minha vida para sobreviver, sendo assim, também se foi junto comigo.
***
Alguns meses atrás...
Não entendia porque uma mulher deveria se casar. O casamento sempre nasce de interesses escusos como: política, herança, mas quase nunca de paixão. Seria até imoral falar de paixão numa França de tantas misérias para a classe mais empobrecida e faminta.
Eu fazia parte do chamado terceiro estado no meu País. O estado que mantinha as classes mais abastadas, como o clero e a nobreza. Estávamos todos condenados aos impostos intermináveis, dízimos, corvéia, obrigações feudais, enfermidades sem cura, tal como foi a peste negra.
Minha mãe foi vítima da doença aos seus vinte e cinco anos de idade, nos deixando sós, a mim e aos meus irmãos. Estes também faleceram um a um, restando apenas meu pai e eu. Vivíamos numa aldeia de artesãos e camponeses e, como todos, passávamos muita fome e necessidades.
O trabalho era dividido por toda família, inclusive entre as mulheres e crianças. As primeiras eram tratadas sem respeito, ou pudor muitas vezes. E quando o era, estavam condenadas a servir seus maridos e filhos até a chegada da morte. Com as crianças também não se tinha o cuidado de poupá-las de trabalhos, ainda que na mais tenra idade. A violência era cotidiana em nossa sociedade. Até mesmo o sexo era praticado sem composturas sociais. A nobreza da corte era a maior referência do belo e do magnífico inatingível para nós.
O casamento, ao contrário do que possa parecer, não era a tábua de salvação. Além de viver em situações precárias, eu precisava de um dote para casar-me bem. Contudo, no meu caso, sempre fui arranjada para o senhor das dívidas do meu pai. Melhor dizendo, o filho dele. O casamento, bem sabia que me traria uma carga enorme aos trabalhos que já tinha no dia a dia.
A lascívia e outros vícios masculinos atormentavam o cotidiano das mulheres, pois não raro elas eram pegas, desprevenidas, e estupradas em campo aberto, ou até mesmo em suas casas. Inclusive algumas por seus próprios parentes!
Mas o coração feminino é também um universo enorme de mistérios, desejos e sonhos. Eu sonhava que meu destino ainda poderia ser diferente. Nunca deixei de querer uma vida melhor, embora as minhas condições de vida fossem precárias. Há muitos caminhos que se segue por falta de escolhas, contudo não haveria de ser o meu caso.
Porém, nenhum problema teria mais importância para mim a partir da noite que conheci Edmond Laforet. Até então nunca tinha ouvido falar dele, ou de sua família. Não sabia sequer o que fazia para ostentar tanto bom gosto e beleza ao vestir-se e ao comportar-se. Pensei que se tratava de um elemento da mais alta nobreza, podendo até mesmo habitar o palácio suntuoso de Versalhes, mas não tinha certeza.
Só bastava-me admirar seu porte imponente e ao mesmo tempo humilde, talvez por uma timidez que lhe marcava o olhar. A sua expressão ambígua era misteriosamente sedutora para mim. Belo e altivo, cativou-me com um sorriso discreto quando me olhou pela primeira vez. Não sabia ainda, mas estava diante do homem que mudaria meu destino para sempre.
Tudo aconteceu quando eu pensava em minha própria vida, deitada sob o leito do refúgio das minhas angústias – o belo riacho que corria perto de onde morava. Repassava o sofrimento do meu pai, as últimas horas de minha mãe, o fato de não ter irmãos para me ajudar no sustento de tudo, isso era repassado, várias e várias vezes, em minha cabeça. Neste lugar era onde eu também ousava ler algumas vezes. Com muita perseverança e ousadia de minha parte, busquei - apesar dos meus trabalhos no campo - a oportunidade de conhecer mais sobre o mundo, as pessoas e as ciências juntos aos livros - que tinha a oportunidade de encontrar no pequeno acervo de alguns burgos para os quais trabalhei.
Levantei num susto e me dei conta que não poderia estar mais tão sozinha ali. Tratei de sair apressadamente, pois tinha medo do mal que poderia acontecer se fossem homens que se aproximavam, mas não tive tempo de recolher minhas coisas. Era tarde demais. Percebi que dois senhores olhavam-me como se fossem devorar-me com os olhos. E não foi preciso ser muito inteligente para entender o que tinham em mente.
Tentei correr do jeito que estava, mas não consegui ir muito longe. Machuquei minha cabeça em um galho durante a fuga e, mesmo sentindo o sangue escorrer pelo rosto, eu busquei ajuda na esperança de que alguém piedoso pudesse ouvir meus gritos de socorro. Não poderia encontrar palavras para descrever com nitidez os exatos minutos de pavor que senti naquele momento que, jogada ao chão, me debatia por liberdade.
Cansada e sem forças para lutar contra os dois ao mesmo tempo, desejei a morte daqueles infelizes por alguns segundos e, imediatamente, lembrei-me de rezar para que um anjo aparecesse e me salvasse, enquanto eles arrancavam-me as poucas vestes.
Fechei os olhos para esquecer onde estava quando, de repente, surgiu um rapaz de trajes nobres que lançou os dois homens violentamente para longe. Se não tivesse visto com meus próprios olhos, não acreditaria. O desconhecido que acabava de me salvar era extremamente forte! Logo, todos haviam desaparecido. Tive tempo apenas de escutar gritos ao longe. Olhei para os lados para entender o que tinha acontecido e só escutava o barulho de desespero dos homens e o grunhido, como de um animal selvagem.
Assustada, mas aliviada ao mesmo tempo, me recompus como pude e levantei depressa. Tentei correr o mais rápido que pude, mas como o meu ferimento doía demais, eu parei um pouco para suportar seguir em frente e foi quando o vi. O mais belo cavalheiro que meus olhos já viram e, também o meu salvador aquele dia, estava diante de mim. Parecia um sonho encontrar aquele belo rapaz apesar de uma situação tão apavorante pela qual estava passando.
O moço bem vestido parecia estar hipnotizado momentaneamente, pois me olhava com seus olhos escuros e bem intensos. Os cabelos lisos e compridos, a pele branca e aparentemente limpa, o corpo esbelto e alto, era o conjunto perfeito para que eu ficasse completamente atônita ao admirá-lo.
Senti-me constrangida por alguns momentos devido à forma com que fitava o meu busto seminu, bem como a minha boca, com um ar de fome, aparentemente. Após um tempo percebi que ele reparava no sangue que escorria de meu ferimento. A minha respiração ofegante parecia estar exalando um cheiro que lhe agradava aos sentidos.
Após essas percepções, a primeira coisa que me veio à mente foi a possibilidade do mesmo ser uma espécie de vampiro. Já tinha ouvido falar na epidemia destas criaturas pelo oeste europeu. Muitos relatos de casos de ataques a humanos, vivos ou mortos eram divulgados. Além disso, relatórios médicos ajudavam a alastrar que estas criaturas estavam à solta entre nós. Somando-se à fome e às doenças, os vampiros poderiam ser um dos principais causadores de tantas mortes em nossa região. Mesmo sob essa suspeita, eu esperei para ver o que aconteceria e não tive medo, pois não esperava que a fera misteriosa pudesse ser aquele belo nobre. Poderia ser o anjo por quem rezei há pouco. Que tolice a minha! – pensei.
Aproximou-se devagar, sem tirar os olhos dos meus. Agora parecia um misto de ternura e pena que ele demonstrava. Acariciou o meu rosto sem dizer uma palavra. Eu podia ouvir meu próprio coração de onde estava, de tão forte que batia. Percebi que ele havia notado o meu fascínio, mas eu estava paralisada como se estivesse sob um encanto.
Deixei que tocasse o meu ombro para sentir o fio de sangue que descia sobre ele. Logo após, levou as mãos à boca e provou-o delicadamente. Foi quando me assustei de verdade. Olhou nos meus olhos novamente, pensei que fosse me beijar, mas ao invés disso arrancou um dos mais belos exemplares dos lírios que havia a nossa volta e me ofereceu, interrompendo seu silêncio com uma voz segura e, ao mesmo tempo suave.
- Acaba de me acertar, como um raio de sol, atravessando as trevas que me encontro. Você é perfeita, tal como essa pequena criação feita de pureza, inocência e beleza. – disse ao fazer-me uma reverência.
Eu fiquei enternecida com aquele gesto. Nunca havia recebido qualquer flor em minha vida. Muito menos através de uma atitude tão singela e espontânea.
- Obrigada, mas por que falas assim? Posso ser casada... Posso não ser pura. Como me julgas sem me conhecer?
- Ainda assim seria pura, pois é uma pureza d’alma e não da matéria a que me refiro, nobre dama!
- Zombas de mim? Acaso não percebestes minhas humildes vestes? Sabes que não sou uma dama, cavalheiro! Por acaso, foste tu quem me salvaste agora há pouco?
- Não. Eu quem fui salvo neste dia, pois nunca houvera visto uma criatura com tantos encantos, beleza e ternura tal que me fizeram recuar de meus torpes propósitos – dizia com um olhar deslumbrado.
- Por que sentiste o meu sangue? – perguntei-lhe, mas com medo da resposta.
- O que provei foi muito pouco perto do que gostaria ... Parece que não credes no que acaba de incitar dentro do meu pobre peito. – ele continuava a declarar com uma voz exultante.
- Por favor, o senhor estar sendo impetuoso demais! Se veio para me fazer mal tenha piedade e desista, caso contrário agradeço por me ajudar, mas peço que se afaste e me deixe voltar para casa de meu pai!
- Eu sinto muito se lhe assustei. Sinto-me perdido no que dizer exatamente... Não vou lhe fazer mal algum! Deixe-me apenas olhá-la mais um pouco, penso que poderia não voltar a vê-la e tenho medo de esquecer esse semblante tão admirável.
Aquelas palavras pareciam entrar no meu espírito. Senti uma vontade imensa de beijá-lo, mas contive meus pensamentos absurdamente insanos e apenas o olhei fixamente como se quisesse transparecer o que eu estava sentindo. Parecia saber, pois não parou de aproximar-se e quando estava bem perto dos meus lábios, sedentos por um beijo, mais uma vez fechei os olhos e fui surpreendida por sua ausência. Abri os olhos e o procurei ao redor, mas não vi mais ninguém, exceto o vale vazio novamente.
***
Passaram-se alguns dias, mas meus pensamentos ainda estavam naquele belo rapaz. Mesmo ocupada com minhas tarefas, meu coração encontrava alegria quando se lembrava do seu sorriso. E tinha o olhar mais ardente que já vi! Não tinha dúvidas de que havia me apaixonado por ele, mas onde encontrá-lo? De onde teria surgido? De fato foi meu salvador aquele dia? Não poderia supor que fosse um malfeitor qualquer, pois não me fez nada além de me envolver perdidamente por suas palavras.
Minhas esperanças de reencontrá-lo já estavam se esgotando. Cheguei a pensar que ele de fato poderia ter sido um anjo e não voltaria mais à Terra. Mas era tolice minha pensar assim, porque um anjo jamais me olharia com aquele semblante de desejo. Alimentava minhas expectativas em vê-lo de novo, por isso, voltei algumas vezes ao mesmo riacho, mas desta vez não mais arrisquei demorar-me para evitar problemas.
Continuava a rotina de afazeres diários, desdobrando-me em atividades domésticas e no campo, onde plantávamos praticamente todo nosso sustento. Eu tentava manter minhas roupas apresentáveis e pele limpas, mas não podia dar muita atenção a isso já que, além de pouco tempo, mal havia dinheiro para comprar os mantimentos que nós precisávamos para sobreviver. Portanto, estava sempre maltrapilha. Pensando em como eu me vestia e me comportava, deduzi que era uma realidade bem distante daquele homem misterioso.
Conformada com a minha situação, tentei esquecer o assunto. No entanto, numa tarde escura, estava sozinha debruçada sobre o poço - que era compartilhado por alguns vizinhos - e puxava o balde com a água necessária para o preparo da refeição naquele dia. Contudo parecia que haviam trocado o recipiente, pois ele estava mais pesado que o de costume e eu precisava me esforçar em dobro para erguê-lo. Quando tomei um susto ao sentir que alguém surgia atrás de mim e segurava minhas mãos, ajudando-me com o peso. Imediatamente, soltei a corda com a qual puxava o balde. Foi então que o mesmo nobre de antes evitou que a água voltasse ao fundo do poço.
- Quase me matou de susto! O que faz aqui? – perguntei-lhe, assustada, mas imensamente alegre por vê-lo de novo.
- Eu não a estava seguindo, se é o que temes, mas não pude resisti a vir ajudá-la...
- Como... Como soube que estava aqui? Não é muito comum senhores de sua estirpe passarem por essa região!
- Eu sou um tanto incomum! Como também não é costume, donzelas passarem longos tempos sozinha, à beira de riachos ...
- Eu não fico lá por muito tempo e... Espere, como sabe disso também?
- Já que me fazes tantas perguntas... Posso fazer-lhe uma? – interrompeu-me sorrindo, mas com um ar seguro.
Respondi com a cabeça que sim.
- Como posso voltar a vê-la mais vezes? Se for esse o seu desejo também, claro!
- Não imagino o que está pretendendo com essa pergunta, mas afirmo que sou prometida. E meu pai...
Naquele momento fomos interrompidos por risadas de alguns camponeses que se aproximavam. Virei-me e quando voltei para continuar a responder-lhe, não estava mais lá.
Bastante impetuoso e atrevido! – pensei. Mas de toda forma ele já havia me conquistado com seus encantos. Vivia rodeada por homens tão maltrapilhos quanto eu, que era quase um adorno para meus olhos apreciar alguém tão belo, limpo e, aparentemente, saudável.
Senti-me tão tola por não ter dito quando me ver novamente! Queria ter-lhe confessado muitas coisas. Inclusive havia esquecido de agradecer a ajuda que me prestou naquele dia. Estava insegura, pois nunca havia conversado com alguém tão importante, antes. Ao mesmo tempo não queria demonstrar minha pouca idade e meus medos. Ele deveria ter, mais ou menos, uns vinte e cinco anos e eu tinha apenas dezesseis, recentemente completos.
Para alguém, tão jovem quanto eu, que precisou amadurecer, prematuramente, enterrando boa parte de seus dias tenros da infância; as declarações de Edmond eram quase como uma luz, que enchia de vida e esperança o meu futuro já fadado a servidão ao homem que seria o meu marido.
Ele parecia ser diferente. Mesmo sem o conhecer direito, pude perceber que havia algo especial nele. O meu coração nunca havia se apaixonado antes. Estava desabrochando para a vida e para as pessoas, como uma flor que se abre para os primeiros raios de sol de uma primavera. Meus sonhos eram tão puros! Tão cheios de inocência e amor! Estava completamente indefesa e vulnerável a me apaixonar.
Retornei para casa pensando na porção de coisas que deixei de dizer e perguntar. Por outro lado lembrei que não poderia sonhar tão alto. Meu casamento já estava marcado há algum tempo e meu pai não via mais a hora dele acontecer. Por ele, eu deveria ter me casado aos doze anos, mas meu futuro esposo ainda não tinha condições de terminar a casa que iríamos viver, logo, tive que esperá-lo. Por certo aquele nobre não pensava em casar-se com uma simples camponesa, portanto, mais uma vez tentei dissuadir meus pensamentos.
Certa noite quando me preparava para descansar de mais um dia de bastante trabalho, admirava através da janela, a escuridão lá fora e escutava apenas os sons dos animais noturnos que pareciam reverenciar as trevas.
Senti uma alegria estranha e uma atração súbita para ir ao encontro daquela “festa” iluminada apenas pela luz da lua cheia que apontava no céu estrelado. Ao ar livre, mesmo estando frio, deixei que a brisa da noite penteasse meus cabelos, quando alguém sussurrou próximo ao meu pescoço:
- Não pude resistir a encontrá-la novamente.
Reconhecendo aquela voz, após alguns instantes de susto, não precisei virar-me para ter certeza de quem se tratava. Meu coração quase saltava para fora do peito, logo senti um arrepio por todo corpo como num choque delicioso. Havia algo naquela voz que nitidamente me seduzia.
- Desejei tanto que viesse! – disse-lhe sem mesmo acreditar que tinha tido coragem para falar assim.
- Eu escutei o seu chamado e também desejava reencontrá-la. – respondeu carinhosamente.
- Nem ao menos sabe quem eu sou, ou meu nome ...– disse ainda de costas para ele.
- Você também não sabe nada sobre mim e me chamou mesmo assim.
- Posso ter desejado vê-lo, mas só em pensamento. Não sabia qual nome lhe dar...– disse, virando-me lentamente.
Ao olhá-lo de frente, reparei que me trazia novamente um pequeno lírio nas mãos, semelhante ao que me entregou quando nos vimos na primeira vez.
- Edmond Laforet - disse num sorriso, ao beijar-me a mão, num gesto suave - E você é Gabrielle Louvain.
- Como sabes?
Sem responder, ele olhou-me com o mesmo olhar intenso de antes e aproximou-se devagar.
- É como se tivesse roubado a minha vida e o meu coração no instante em que a vi, Gabrielle!
- Quem tu és? De onde vieste?
- Só posso responder que me encantei por ti, como só a mais insana das criaturas poderia, pois mesmo correndo tantos riscos, vim ao teu encontro. Não pude mais suportar a vontade de vê-la outra vez!
- Sabes bem o que está dizendo? Não podes estar sendo sincero... sou bem diferente de...
- Estou aqui não estou? Venci meus próprios desafios para estar aqui com você agora!
- Quais desafios? Das castas que nos separam? Não compreendo...
- Eu te livrei daquelas criaturas, mas não imaginas o que tinha em mente para ti naquele dia... no entanto quando a vi fui traído até pelo meu próprio instinto. Previ, naquele instante, que estava diante do anjo que me roubaria o coração, pois encontrei na tua aparente fragilidade a certeza que nunca mais seria o mesmo. Arrebatastes tudo que tinha com apenas um olhar! Senti o seu perfume e após isso soube que era hora de me afastar, já que não tinha mais outros pensamentos senão os de...
-Está sendo impetuoso outra vez... Não sei o que quer dizer. Embora queira lhe perguntar tanta coisa... ao mesmo tempo tenho medo de saber as respostas! Fala de coisas difíceis para minha compreensão! Às vezes acho que está brincando comigo...
- Diga apenas o que sentes por mim e já partiria satisfeito.
- Não, eu não quero que vá! Esperei-te tanto! Quer dizer... eu gosto quando vem me visitar...
- Não sabes o que pedes! Pode estar correndo um grande perigo nesse momento...
- Não tenho mais medo! Se quisesse me fazer algum mal já o teria feito antes. Não sei o quer de mim realmente, mas não tenho muito a lhe oferecer, a não ser minha eterna gratidão por me ter salvo e...
Sem coragem para terminar o que ousaria lhe dizer, abaixei os olhos e fiquei visivelmente constrangida.
- Não diga mais nada! Não quero aumentar tuas esperanças por um possível matrimônio entre nós, mas também não quero desiludir-te por achares que não te considero para tanto. Eu tenho sentimentos por ti o suficiente para não deixá-la nunca mais. Só não me peças o impossível.
- Porque impossível? Já és casado, ou se considera nobre demais para aceitar o enlace com alguém de minha estirpe?
- Sou casado apenas com os meus instintos e este é meu eterno fardo.
- Não me importa sobre o que estejas falando... Sei apenas que você apareceu como uma luz em minha vida e despertou sentimentos que nem sabia existirem!
- Não me compares a uma luz! Sou longe de ser um homem, muito menos algo iluminado! Iria me odiar se soubesse a verdade!
Sem tanta inibição de minha parte, segurei-lhe o rosto próximo ao meu e confortei-o.
- Sei que parece uma insanidade dizer agora que te amo, mas... eu não me importo mais! Posso e quero ser tua, Edmond! Prometo aqui e por todos os santos que vou estar com você por toda eternidade! Não me interessa quem és, pois tenho certeza que o amo e só isso me basta saber!
Após dizer isso eu tentei beijá-lo, mas inesperadamente afastou os meus lábios.
- Se souberes quem sou prometes que ainda assim teria coragem de me dar este beijo?
- Não me iria dizer que tens alguma doença, por certo? O que poderia ser de tão asqueroso assim? - hesitei por um momento e perguntei - Seria a peste?
- Eu possuo uma doença incurável... Uma doença que me macula a alma, o corpo e agora, mais do que nunca, o coração, pois sei que estou prestes a ouvi-la retirar cada palavra de amor que disseste – disse-me profundamente consternado.
- Tire esse medo do seu coração e confie em meus sinceros sentimentos! São reais! E os seus? O que sentes por mim também é real?
- Não faz idéia do que perguntas...
- Não desvie do que temes em me dizer. Não sentes o mesmo, não é? Estou apenas sonhando? Ah, Edmond, não imaginava que alguém como você pudesse surgir para mim um dia! Quando o vi naquele riacho, parecia um anjo! Tão belo! Tão...
- Chega. Gabrielle, escute ...
- Não! Você deve ouvir o que tenho a dizer. Tem idéia do que representou cada palavra que disseste para mim desde que nos conhecemos? Antes, só sonhava com o meu destino mergulhado em tristeza e melancolia. És diferente dos outros...
- Estás condicionando tua felicidade a mim. Não faças isso. Ninguém é responsável pela felicidade do próximo. Por mais que diga agora o que queres ouvir, será sempre a única encarregada por tuas escolhas. Ah, minha querida, há tanto para explicar... Por enquanto esteja certa de que não posso permitir que confies teus sonhos românticos a um estranho que...
- Mesmo que esse estranho esteja à minha frente tentando me proteger dele mesmo? Eu não estou lhe entendendo mais! Primeiro me envolve com aquelas belas declarações, agora diz que são apenas sonhos românticos?
- Foi um erro talvez. De minha parte, devo admitir. Sou obrigado a ser franco contigo, se desejo que não me odeies um dia – tocou em meu rosto, suavemente e continuou – Também me apaixonei por ti. Seria impossível não se encantar por tão belo rosto, pela tua alegria! Como gostaria de simplesmente abraçá-la e dizer tudo o que sinto dentro de mim!
Ao confessar isso, não deixei que continuasse mais. Sorri tampando-lhe os lábios.
- Então faça. Não pensemos em mais nada! – disse abraçando-o suavemente.
Em seus braços pude sentir o quanto seu corpo era aconchegante. A miscelânea de cheiros e a diferente temperatura que ele possuía foram confortantes para meus anseios. No mesmo instante tive a segurança que sempre almejei. Sua respiração, perto de meu ouvido, me levou a uma viagem surpreendente em meus pensamentos. Tive a certeza de que precisaria daquilo pelo resto da vida. Ele me enlaçava com toda força de seu coração também. Só Deus poderia ser testemunha do que se passava dentro de nós naquele momento, e do que eu seria capaz de fazer para que este instante fosse eterno.
***
Conversávamos por horas, sempre ao entardecer e em locais secretos. Mas qualquer lugar era sagrado quando estávamos juntos. Estava cada vez mais apaixonada. Contava-me histórias engraçadas e surpreendentes, repletas de mitos e heróis. Adorava cada palavra!. Parecia ser tão vivido e experiente! A impressão que tinha era que o conhecia há muito tempo, pois até seus gestos me eram familiares. Também lhe falava muito de minha vida e do que sonhava para o futuro. A nossa realidade parecia ser diversa, mas ao mesmo tempo próxima e similar. Crescia em nós uma nítida necessidade de estarmos perto um do outro a cada dia.
Através do seu jeito doce e espontâneo, reencontrei a criança que adormecia em mim e descobri a mulher que há muito gostaria de conhecer. Brincávamos e nos divertíamos muito pelos campos das redondezas. Estávamos sem medo, ou vergonha de demonstrar o que éramos por dentro. A nossa alegria era traduzida em nossos olhares e vibração por estarmos nos conhecendo pouco a pouco. O som da sua voz, o brilho dos seus olhos, tudo era como um relicário. Via, em cada sorriso seu, uma luz iluminando minha vida. Como poderiam caber tantos sentimentos assim dentro de um mesmo coração? – perguntava-me em pensamento.
Tentava refrear minhas inseguranças quanto a reciprocidade do que estava sentindo, acreditando que Deus não plantaria uma semente de um amor tão grande, se esse o mesmo não fosse correspondido de alguma forma. Estava vivendo o mais doce sonho até que as coisas começaram a tornar-se reais demais para mim.
- Gabrielle, escute, não sei qual seria a melhor oportunidade para contar-lhe o que preciso. Existe algo que precisa saber, que poderá mudar tudo que sentes até então. Nada irá transformar o que já despertastes em mim, mas só caberá a ti julgar o que estás prestes a descobrir - parou por um instante e, bastante sério, olhou bem em meus olhos e pude ver nos seus um brilho estranho.
- Está me deixando nervosa.
- Já ouviste falar, ou acreditas, de alguma forma, em seres que não sejam totalmente humanos? Como feras, ou animais que devoram suas vítimas, esmagando a jugular, através das presas, até sentir o último fio de sangue que corre por ela se esvair lentamente, carregando consigo o derradeiro sopro de vida que lhe resta...
- Do que está falando? Eu... não entendo! – afastei-me como num susto.
- Não sou... o que pensa, Gabrielle. Não sou... – virou-se de costas, como se sentisse vergonha do que estava por dizer – Talvez nem mesmo seja mais... humano – completou ao respirar fundo.
Ouvindo aquilo achei que estivesse brincando.
- Não percebes que está me magoando falando desse jeito? Como não haveria de ser humano? Eu estou o vendo aqui e... Acaso pensas que sou tola?! Ainda está zombando de minha ingenuidade? Está dizendo isso para assustar-me. No que quer que eu acredite?
Hesitou por um instante e continuou:
- Só tenha certeza que não sou um monstro! Não como poderia imaginar... – refletiu por alguns segundos e, buscando fôlego e coragem para continuar o que estava prestes a revelar, disse seriamente. - Estou a séculos neste mundo e já cometi muitos erros. A minha natureza não me deixa muitas escolhas... Já fui um homem normal quando pude desfrutar da dádiva de estar vivo, mas isso me foi roubado por um ser atroz, que não me poupou do sofrimento de tirar o que tinha de mais valioso: a vida.
Fiquei perplexa com que ouvia. Não disse mais nada. Estava perturbada e confusa, pois era estranho demais acreditar no que me dizia. Apenas, sabia que poderia ser tudo, menos um monstro, o dono de tão belas palavras.
- Eu não acredito que você possa ter cometido tantos erros assim... Tens um olhar tão puro! Além disso, estás vivo! Como falas em ter morrido e ter vivido por séculos?
- Possuo sentimentos, mas num corpo de uma fera insana! – interrompeu-me, um pouco mais agressivo.
- Você está enganado! Posso não conhecer muito dos homens e da maldade que habita neles, mas eu reconheço quando vejo alguém tão bom quanto você. Sinto-me abençoada por ter te encontrado. Seus olhos não deixam que continue mentindo sobre sua verdadeira índole. Tenho plena confiança que falo com um homem de puro coração...
Sem que me deixasse continuar, ele me abraçou como um menino assustado que acabava de encontrar consolo. Apertava-me com tanta força, que quase senti sufocar-me.
- Eu também preciso que me salve! – sussurrou em meu ouvido.
- Estou aqui agora... Seremos só eu e você, juntos! – tentei confortá-lo.
- Não desista de confiar em mim, não desista de acreditar em estarmos juntos, haja o que houver! – suplicou com uma voz trêmula.
Dizendo isso desapareceu com a névoa da escuridão.
***
Sonhava com Edmond todas as noites a partir dali. Não apenas com seu belo rosto, mas também com suas palavras e todo o mistério que o rodeava. Pensei muito, também, em tudo que havia dito. Inclusive que temia me perder caso revelasse a verdade sobre criaturas como ele. “Do que ele poderia estar falando? - perguntava-me.
Quanto mais eu tentasse entender do mal a que ele se referia, eu descobria que não poderia imaginá-lo de outra maneira senão o de o homem certo para minha vida. Tudo nele me convidava a amá-lo, sem me importar com mais nada.
Sabia que poderia tratar-se de alguém diferente, mas o que poderia fazer àquela altura? Estava apaixonada por ele! Como era bom tudo o que estava sentindo! A mistura de desejo que tomava conta do meu corpo e a alegria que invadia minha alma era sublime!
Desejei muito que retornasse a me visitar. Sempre que meu pai adormecia, ia até a janela e esperava por ele, mas os dias se passaram e não pude vê-lo mais. Voltei a ficar triste e sem estímulo para mais nada. As coisas não poderiam ficar piores quando fui surpreendida com a antecipação da data do meu casamento com Gerard Godin.
- Por favor, meu pai, livre-me deste destino! Não pretendo casar-me com ninguém! – supliquei assim que soube.
- Estás louca? Como não pretendes casar-se com ninguém? O filho do senhor Godin irá desposá-la em breve e poderemos ter uma vida melhor, estúpida! Não terei mais que sustentá-la sozinho, do contrário morreremos todos de fome! – respondeu-me grosseiramente.
- Sabes que trabalho muito! Não é verdade o que dizes! Queres que me case para que lhe perdoem as dívidas!
- Petulante! Mesmo sendo verdade, estaria certo em assim fazê-lo, pois as dívidas feitas foram para o nosso sustento, portanto é tua dívida também, nada mais justo que pagues. Ao menos, Gerard abriu mão do teu dote! Ademais, é um bom moço e confessou que estava encantado com vossa formosura. Fiz um excelente negócio para tua vida e é assim que me agradas? Não vou viver por muito tempo. Vais precisar arranjar alguém que te sustente...
Não quis ouvir mais nada e preferi chorar sozinha. Parecia que tudo estava perdido, agora. Edmond me abandonou, estaria destinada a ser de outra pessoa até o fim de meus dias e não via saída para fugir de tal compromisso, a não ser que morresse. Nunca pensei tanto na possibilidade de morrer até então.
A data do casamento foi acertada e mesmo assim ainda tinha esperanças que Edmond aparecesse e de certo fugiria com ele. Estava decidida.
Num entardecer, quando o sol preparava-se para repousar, fui surpreendida com a visita inesperada de meu noivo. Não sabia o que tinha vindo fazer em minha casa àquela hora. Estava só e não poderia receber visitas, principalmente as dele.
- Gabrielle! – gritou ele à minha porta.
- Na qualidade de meu noivo, senhor, sabes que não posso convidá-lo a entrar, estou sozinha. Peço que volte outra hora.
- Não vou me demorar. Estou ferido e necessito apenas de alguns curativos. Sei que não me negaria ajuda numa situação dessas.
- Entre, mas que seja breve, logo meu pai estará de volta e...
Ao vê-lo, fiquei impressionada com o jovem rapaz quando abri a porta. Por incrível que pareça eu ainda não o conhecia e era bem diferente de como eu o imaginava. Era razoavelmente bonito e falava a verdade quanto ao ferimento em seu braço.
Limpei suas feridas e tentei não dar-lhe qualquer intimidade para falarmos de outros assuntos. Apesar de atraente, não conseguia imaginar-me casada com outro homem senão Edmond.
- Sempre fui apaixonado por ti, Gabrielle! Ainda menino sonhava com este dia. És a moça mais bonita de toda França! – disse, ao aproximar-se com olhos de cobiça.
- Ora, senhor Gerard! Deixe de tolices! Todos souberam de suas aventuras amorosas com as cortesãs... – retruquei, me afastando para trás.
- Minhas aventuras não dizem respeito a você! Irá casar-se comigo! Serás minha em breve. Por que não aproveitamos que estamos sós para...
- Pode-se ver o amor que me tens senhor Gerard! – comentei com ironia - Agora peço que se retire antes que meu pai retorne e nos encontre à sós. Estaria desfeito o acordo se tentasses algo antes da hora! – respondi-lhe, afastando-o ainda mais.
CAPÍTULO 2
Semanas se passaram sem que Edmond aparecesse. O procurei por toda a região e ninguém tinha ouvido falar dele por ali. Infelizmente, havia chegado o dia de meu matrimônio e, portanto, restava pouco tempo para que minha condenação se consumasse Lembrei-me novamente de Edmond. Como eu estava decepcionada! Havia me iludido com suas palavras, mas ainda acreditava que pudesse aparecer num último minuto antes da cerimônia, talvez. Nutria esperanças de que algo pudesse impedir minha desgraça, mas ela finalmente aconteceu, sem que eu tivesse como escapar.
Após haver casado com Gerard tive que segui-lo para a casa que havia construído para nós. Logo mais, ao cair da tarde, à noite se aproximava e perto de consumar minhas núpcias, parecia que caminhava para minha morte. “Antes estivesse sem vida, que condenada a deitar-me com quem não amo!” – disse em pensamento. Ele ordenou que me despisse e esperasse por ele. Obedeci a suas ordens e o esperei no quarto, mas apaguei todas as velas para que ao menos não enxergasse seu rosto ao me tocar.
Após vários minutos de silêncio, como numa brisa de vento, senti o perfume das flores que Edmond sempre me trazia: lírios. Em seguida sua voz cortou o sossego daquele recinto.
- Estou aqui, Gabrielle!
- Edmond! É você? – perguntei assustada.
- Tentei resistir, mas não podia suportar mais!
- Por que não vieste antes?
- Como poderia viver sabendo que não seria mais minha? - disse ele, com a voz serena como de costume e já bem perto de meu rosto.
- Estás louco! Meu marido está vindo, precisas se esconder... Aliás, não sei... Como conseguiste entrar aqui?
- Não temas mais teu marido, Gabrielle! Nunca mais verás este homem.
- Do que está falando? O que fez com Gerard? – perguntei assustada.
- Esqueça-o! És minha agora. – seus olhos brilharam no instante em que transpareceu certa raiva por eu ter demonstrado preocupação com meu marido.
- O que você fez, Edmond? Por Deus não me diga que...
- Avisei-te quem era quando prometeste amor eterno. Mataria tantos outros que ousarem tirá-la de mim! – pronunciou friamente.
- Não é possível! Como, como... fez isso? – perguntei-lhe horrorizada.
- Sou um animal, faminto por sangue, Gabrielle! Já havia tentado lhe dizer isso antes. Eu sinto muito por ser assim, mas este sou eu e estou aqui diante de ti pronto para qualquer julgamento, ou... repulsa de tua parte. Só não suportaria ver-te com outro e não fazer nada. Tentei afastar-me de meus sentimentos, mas não fui forte o bastante.
Reparando que eu estava despida sob um lençol, olhou-me novamente com o antigo ar de “fome” e continuou.
- Não consigo evitar meus desejos e sufocar a imensa atração que sinto pelo teu corpo, pelo cheiro que exala das veias... a sede que tenho de provar-te! – pronunciava tais palavras com seu hálito embriagante e sedutor, mas refreei-o antes que me beijasse.
- Agora estou realmente assustada, Edmond! Tu és um assassino!
Neste momento ele me olhava nos olhos através da pouca luz que invadia a janela daquele aposento e percebi que seus olhos estavam mais iluminados que antes.
- Não te esqueças do que te disse no nosso último encontro. Já tirei muitas vidas. Não sem algum propósito, mas... por falta de escolhas. Às vezes faço para sobreviver, sendo rendido pela minha desprezível natureza e somente atinjo os que cruzam o meu caminho... Contudo, confesso que desta vez tive prazer em afastá-lo de ti! Não percebe o ciúme que sinto, Gabrielle?
- Mas não viestes mais, nem me procurastes, ou ao menos tentou impedir meu casamento! Bastaria isso para que eu não estivesse aqui, então não precisaria fazer nada que...
- Há poucas noites pude escutar tuas preces me chamando. Pude sentir tuas lágrimas, pedindo para que viesse, mas eu não podia vir, tinha medo. Um medo que nunca experimentei antes. Mas não suportaria perdê-la para ninguém, nem que para isso tivesse que dar minha própria vida se possível fosse! Nem pense em ser de outro além de mim! – afirmou com um impulso de me beijar, mas o refreei mais uma vez.
- Para viver contigo preciso saber toda a verdade. Quem és afinal?
Ao invés de me responder ele afastou-se um pouco e, lentamente, mostrou-se de uma forma na qual eu nunca tinha visto nada parecido. Seus olhos brilharam mais que nunca e seus caninos superiores aumentaram um pouco, mas não de forma assustadora. Pelo contrário! Combinavam perfeitamente com seu rosto magnífico e sua pele clara. Em nada me pareceu com um monstro, ou uma fera. Parecia estranho, mas senti uma excitação inexplicável e uma volúpia percorreu meu corpo. Ao contrário do que poderia ser o esperado naquele momento, eu não tive medo algum. Perplexa por alguns instantes, fiquei a apreciá-lo sem dizer mais nada, até que, por um sobressalto em meus sentidos, deixei vir a tona o pouco do instinto de sobrevivência que me restava.
- Então esta é a tua natureza real? A de um assassino frio? Como podes ser um... vampiro? Não posso crer!
Permaneceu imóvel, sem dizer uma palavra. Olhava-me nos olhos como se estivesse preparado para ouvir as piores coisas. Devido ao seu silêncio, continuei.
- Se és assim, devo estar correndo perigo?
- Não. Estranhamente, consigo afastar o lado negro de minha alma quando estou perto de ti. É como se meus instintos se acalmassem. Sinto que, com você, não farei mal a ninguém...
- Acabaste de matar uma pessoa, e por mim, Edmond! – perguntei, demonstrando indignação.
Após alguns segundos de suspense, ele abaixou a cabeça, segurando-a com as mãos. Foi quando percebi que ele estava nitidamente atordoado. Em seguida fitou-me, novamente e prosseguiu.
- Eu sinto muito... – respirou fundo - Deves estar certa, em achar que corre perigo. Talvez nunca consiga ser alguém melhor do que sou agora. Embora... embora eu queira, desesperadamente, tentar... – confessou, com os olhos marejados, apesar de sua expressão, aparentemente séria e fria.
- Disse que não pode ignorar a tua verdadeira natureza. Como posso confiar no que me dizes agora?
- Eu não sei... estou muito confuso também. Não sei mais o que pensar, ou que dizer a você. – refletiu um pouco – Se estiver contigo, de alguma forma, sinto que tudo ficará bem.
Aproximando-me, devagar, de seu rosto segurei sua mão e confessei, um pouco emocionada:
- Edmond, estaria mentindo se dissesse que não sinto a mesma coisa. Apesar dessa revelação, é certo que sempre tentou me prevenir, mas... enfim, mesmo sabendo de tudo isso, agora, eu não tenho saída. Já sou tua, meu amor! Desde que trocamos o primeiro olhar eu soube que este dia iria chegar. Algo sussurrou em minha mente que a partir daquele instante minha vida nunca mais seria a mesma. Vejo que estava certa. Sinto-me pequena diante da tua imensidão. Precisaria ser burra, ou estúpida para te deixar partir por teres me dito a verdade, apenas. Se, está aqui, revelando algo tão sério, que poderia ser determinante para ficarmos juntos, deves ter sentimentos quase tão profundos quanto os meus...
- São muito maiores do que podes imaginar, Gabrielle! – interrompeu-me num ímpeto de emoção.
- Eu sei. Imagino que sejam – respondi-lhe, emocionada também - Nem todas as pessoas possuem o privilégio de saber porque vieram ao mundo, porém, eu agora sei. Nasci para você. Não importa o que seja, ou sob que forma me encontrou. O importante é que estamos juntos. Posso ver em teus olhos que precisas de mim, assim como eu também necessito estar contigo para poder estar viva, porque somos parte um do outro. Jurei te seguir onde estiveres e nunca mais estarás sozinho. Não poderia mais voltar atrás – suspirei numa breve pausa e aproximei-me ainda mais - Deixe-me ser tua, Edmond! – sussurrei-lhe, próximo ao ouvido.
Segurou-me em seus braços com força. Sua pele me fez estremecer. Poderia estar caminhando para minha própria morte, mas estava em êxtase, portanto, seria uma morte doce e prazerosa, naquele momento. Não impedi que apreciasse o cheiro de minhas veias que latejavam ao ritmo do meu coração disparado. Cheguei a pensar que iria finalizar o que temia, mas ao invés disso puxou meu rosto e me beijou suavemente como se degustasse uma fruta suculenta aos poucos. Foi um beijo lento e delicado. Foi uma mistura de paixão e libido que pairava entre nós. Seus lábios tornaram-se quentes e sua pele também me aqueceu. Pude sentir que sua temperatura aumentava a cada momento que me empurrava contra si, em um abraço arrebatador.
- Preciso parar! – gritou afastando-se um pouco – É mais tentador que poderia imaginar! Posso sentir o teu desejo, e por ser tão forte quanto o meu, compreendes que devo parar, pois tenho medo de não me controlar e... ferir-te! – disse ofegante.
- Sei que não faria isso. Tão prazerosa é tua boca para mim, quanto afirmas ser a minha para você. Eu o amo demais! Quero fazer parte da tua essência... ser como és! Se não podes mais ser humano, deixe-me ser ...
- Não continue! Já é tentador demais estar aqui e beijá-la sem devorar-te! O meu desejo é tão grande que chega a doer... dentro de mim! – sussurrava, novamente encostando sua boca em meus lábios.
- Também é doloroso saber que quero ser tua e me impedes. Posso estar louca em dizer isso, mas sei que não iria morrer. Poderia renascer nesta criatura em que te transformaste...
- Eu sei o quanto sofro por ser assim! Não te condenaria a uma eternidade de sofrimento para satisfazer o desejo que nos toma momentaneamente.
Frustrada com a decisão de Edmond, eu pensei um pouco e optei por perguntar-lhe algo que iria, possivelmente, resolver aquele impasse.
- Queres então provar-me apenas um pouco? Refiro-me... ao meu sangue.
- Como pensas em fazer isso? És mais insana que eu poderia supor! Sinto-me mais ser tua presa, que o contrário! – disse com um sorriso.
- Você realmente me deseja?
- Não perguntes o que já tens a resposta! Desejo-te mais que tudo!
Não tive mais dúvidas e propositalmente cortei-me próximo ao pulso, superficialmente, com um dos alfinetes que seguravam o meu vestido ainda jogado ao chão. A adrenalina que estava sentindo foi tanta que confesso não ter percebido nenhuma dor ao praticar aquele ato. Alguns fios de sangue escorreram pelo meu braço, mas e foram o suficiente para que eu o aproximasse lentamente de sua boca, que já ansiava por isso.
Controlando-se para não me morder, lambeu suavemente o líquido que eu lhe escorria à boca por minha própria vontade. Nunca pensei que descreveria a sensação que tive naquele momento. Estava vulnerável a ser completamente devorada até à morte e, mesmo assim, sentia deleite naquela experiência única. A sensação de que se alimentava de mim ao me sugar, como um ser que necessita de outro para sobreviver, me deixou num estado de tensão e prazer que nem ao menos poderia definir em palavras.
Aparentemente assustador e perigoso, não havia nada de macabro no que estava acontecendo. Deixei, apenas que bebesse um pouco do que não faria falta alguma para minha existência, mas que provocaria uma imensurável onda de prazer na criatura por quem eu me apaixonei.
Em meu íntimo sabia que não me mataria. Era guiada por meus instintos também. Sempre fui tão proba e recatada que certamente nunca havia imaginado passar por isso. Não precisou mais que alguns segundos para que ele interrompesse o que estava fazendo e me jogasse sobre a cama, completamente tomado por um ânimo incontrolável. E naquela noite, a única e infeliz morte havia sido a de Gerard.
CAPÍTULO 3
Edmond e eu permanecemos deitados por muito tempo. Alterávamos longas conversas sobre meus poucos anos de vida e sobre o seu longo passado. Descrevia o que havia presenciado em mais de três séculos de existência, suas aventuras e sofrimentos.
Contou-me coisas terríveis que despertavam sua repugnância para com a humanidade. Sobre a aniquilação de centenas de humanos com a peste negra. As cenas de violência que presenciou durante a Inquisição. A injustiça de julgamentos contra as mulheres acusadas de bruxaria. A tirania dos reis absolutistas. A fome, misérias, guerras, mesmo aquelas em nome de um Deus! Eu ficava fascinada com as suas histórias. Às vezes, nem pareciam fazer parte do mesmo mundo que eu. Era deslumbrante e terrível demais tudo que dizia!
Também me contou coisas alegres que havia vivido, principalmente enquanto era humano. E de como havia se tornado vampiro, então perguntei-lhe:
- Nunca soube da existência real de vampiros sobre a terra. Acreditei apenas em suas lendas, mas nunca pude imaginar que Deus permitiria que seres assim pudessem coexistir entre nós. Os que são? De onde vieram? Existe mesmo um anjo do mal?
- Há muitas coisas que não sabes ainda, Gabrielle. Coisas que um dia terei a oportunidade de contar-lhe, mas, por ora, basta saber que existem seres que convivem diariamente entre nós sem que saibamos ao certo suas origens, ou espécies. Existem entidades boas e as que plantam maldades. O importante é saber que não interessa o que semeiam, o mais relevante é aceitar a criatura voltada para a luz, ou voltada para a escuridão que habita em nossas almas. O universo está repleto de coisas que até nossa imaginação não alcançaria, mas não precisa temer. Você possui algo que nenhuma criatura das trevas ousaria atingir: seu coração. Ele é puro. Tens boa índole e és fortemente inclinada para o bem. Humanos assim, dificilmente são atingidos, mesmo em seus momentos de fraqueza. Um coração impuro só precisa de um conselho, ou incitação para cometer crueldades. É onde habita os seres cruéis que acreditas. O demônio, de fato não existe. Não como sempre te ensinaram a crer. Ele é, ou está em nossas escolhas e vocações, se para o bem, ou para o mal. A hipocrisia, a soberba e a ignorância dos homens talvez sejam os piores demônios da humanidade!
- Parece ser tão sábio e não me parece ser alguém ruim, ou cruel, pelo contrário você lembra... um anjo!
- Insistes em acreditar em minha santidade, mesmo sabendo que acabo de matar um ser criado pelo teu Deus? - disse com um olhar carinhoso - Não, minha querida, não sou anjo, como já disse. Sou apenas uma criatura condenada a viver eternamente num mundo de provações para os homens e de eterno carma para mim. Você sabe que um dia irá morrer, mas eu tenho certeza que ainda estarei aqui, mesmo no fim dos tempos... Por que as coisas precisam ser assim? Eu não sei. Não acreditava sequer que Deus pudesse olhar para mim, ou que ainda pudesse chamar de alma o espectro que se move dentro do meu corpo. Não poderia supor que algo bom pudesse me acontecer e que ainda voltaria a ter esperanças de ser salvo, até conhecer você. Acho que posso chamar a ti de meu anjo e não o contrário!
- Enxergo em teu espírito uma luz que até você desconhece. Não és a criatura tão vil que acreditas ser. Tenho certeza do que digo, pois apesar de tudo tens consciência dos seus erros e sofres muito por eles. Como bem disse, tantos outros que são humanos e matam sem piedade! Não justifico as tuas atitudes, mas compreendo-te, meu amor! És bom, sei disso!
- Ouvindo você falar assim, até acredito que podes ter alguma razão. Muito mito criou-se em torno do que somos. Existem vampiros desde a criação dos homens, mas poucos sabem, pois não seria prudente esta revelação. Contudo, o poder que adquirimos torna, alguns de nós, seres frios e sanguinários, mas existem muitos que não se deixaram seduzir pela ostentação da dádiva da imortalidade, ou superioridade física e intelectual em relação aos humanos.
- Mas, afinal de que podes sobreviver se não dos assassinatos de inocentes?
- Não me alimento apenas de sangue humano. Tenho outras fontes. Assim como os humanos devoram as carnes de animais, devoro-lhes apenas o sangue, pois só preciso dele para me manter forte. O meu primitivo instinto não me deixa completamente alheio aos assassinatos, mas procuro canalizar esse ímpeto para castigar a quem julgo merecer e nunca o faria com criaturas frágeis como as crianças, idosos, doentes... ou boas, como você! Não julgo ser nobre o que faço, mas acho que sou uma espécie de... – pensou por alguns segundos e completou - Robin de Locksley, mais conhecido por Robin Hood! Já ouviu falar dele? Viveu no século XIII, na Inglaterra...
- Sim, já ouvi falar de suas lendas, mas nunca soube se são verdadeiras. Roubava riquezas dos nobres para distribuí-las aos miseráveis, não é isso? Estou certa?
- Exato. Também não eram de todo corretas as suas atitudes, mas quem poderia julgá-lo em uma época de tantas injustiças sociais. Injustiças que se vivem até hoje! Portanto, não roubo dinheiro, mas tiro deste mundo os malfeitores que cruzarem o meu caminho, como os dois homens que lhe atacaram no riacho, por exemplo – puxou-me mais para perto e olhou-me fixamente para completar o que dizia – Nunca serás de mais ninguém, Gabrielle! Eu prometo que serei só teu e que serás só minha! Uma das minhas inúmeras fraquezas é o ciúme e só agora posso sentir o quanto isso me domina!
Edmond abaixou o rosto com um ar de tristeza e em seguida completou:
- Eu sinto muito por não haver me controlado! É por isso que me mantive afastado, entendes agora? Como podes amar uma criatura assim? Tu que és tão bela... tão cheia de bondade, que chega a assemelhar-se às criaturas celestiais!
- Acreditava que seres como você não poderiam sequer citar o nome dos santos. Fugiriam da luz do sol, cruzes sagradas... Temeriam estacas, ou alhos... mas falas de Deus e dos anjos com certa intimidade! Como se isso não fosse ameaçador para tua espécie!
Edmond riu ao ouvir minhas palavras.
- Posso lhe garantir que não sou um representante do mal entre os homens. Isto já existe, desde a própria criação, dentro de todos nós. Não se personifica o mal em um ser, ou em alguns seres apenas, pois a maldade está infiltrada nos atos de violência que se vivencia todos os dias. A ignorância dos brutos, a tirania dos poderosos, a exploração dos fracos e a crueldade com os doentes, tudo faz parte da natureza de quem realmente torna-se um monstro pouco a pouco. As coisas não são exatamente iguais ao que dizem as lendas. Não temo a Deus! Pelo contrário, gostaria de voltar a ser seu amigo, seu filho, se assim você preferir chamar todos os humanos criados por Ele. As coisas sagradas não me intimidam e nem mesmo intimidam aqueles que são verdadeiramente maus! Senão porque existem tantos pecadores que matam em nome de Deus e nem por isso temem a cruz? O exorcismo é algo que os homens podem fazer por si mesmos. O verdadeiro arrependimento é o mais poderoso dos exorcismos conhecidos na Terra. Só assim se tira um mal de dentro, ou perto de si. Independente do Deus que acreditas!
Parou de falar por alguns instantes completou:
- Só quero que entendas que só se afasta um mal, seja ele uma criatura das trevas, ou mesmo o que habita dentro de cada um de nós, com o nosso livre arbítrio! Não precisas de estacas, amuletos, cruzes e água benta... Chega a ser tolice acreditar que as forças do bem estariam em objetos inanimados! E quanto a luz do dia, ela não é tão mortal para mim, apenas me enfraquece. Evito-a, mas não a temo.
- O que te mataria então?
- Há várias formas e rituais conhecidos pelas bruxas e outros seres. O mais comum é arrancar o coração de um vampiro e queimá-lo. A carência de sangue por um período muito longo também traria conseqüências letais...
- Nossa! Morreria se fizessem isso contigo!
- Não te preocupes! Passei por muitos duelos e sobrevivi a todos. Contudo, se me deixasse, ou traísse, doeria tanto que o arrancaria de meu próprio peito com minhas mãos!
- Nunca mais repita isso! Nunca duvide do que sinto por você. Ainda que eu morra antes de ti, mesmo que renasça em várias vidas, não duvide do que sinto por você e não desista de mim! – supliquei.
- Não irei duvidar, nem te esquecer! A barreira que construí em torno do meu coração, desde que perdi... – interrompeu o que ia dizer e continuou - É como se tivesse despertado de um sono frio e escuro de muitos anos...
- Continues a dizer. Quem você perdeu Edmond? Já havia estado apaixonado antes? - interrompi-o, bruscamente.
- Sim. Mas foi há muitos anos atrás e prefiro não recordar os momentos que vivi. Embora ela me faça lembrar muito sua aparência, possuem corações bem distintos!
Parou um instante de falar e perguntou-me:
- Por que me olhas assim?
Fitava-o com um olhar deslumbrado e apaixonado. Parecia não acreditar no que estava acontecendo comigo!
- Eu o amo – respondi-lhe ainda com o mesmo olhar.
Enternecido com o que ouviu, Edmond aproximou-se dos meus ouvidos e sussurrou:
- Eu a amo, mais que tudo!
- Gostaria de lhe perguntar algo que a tempo me intriga. Por que sempre os lírios? Nunca rosas, ou qualquer outra flor... Sempre me ofereces lírios em nossos encontros. Aprecio sua beleza, mas sei que deve existir um significado maior.
- Porque foram eles que presenciaram o momento em que te encontrei. Acredito que não foi por acaso que estavam ali, prontos para serem recolhidos e entregues a você. Os lírios significam muitas coisas, dentre elas, inocência, fertilidade, beleza, pureza e... morte também.
- Morte! Acha mesmo isso? São tão alegres, angelicais... – comentei sentindo certo presságio.
- Os lírios são as flores milenares que desde os tempos mais antigos são símbolos de muitas divindades gregas, romanas... São relacionados à santidades, aos mártires... e também são dedicados a jovens inocentes, em seus túmulos.
Sabendo dessas histórias, preferi mudar logo de assunto. Em seguida repetimos outras tantas vezes o mesmo ritual de sangue e amor. Sentia-me mais feliz e plena como nunca poderia imaginar! Conhecê-lo pouco a pouco foi sendo uma aventura excitante e as descobertas faziam com que eu me sentisse mais segura e confiante de que havia feito a escolha certa ao me envolver com um vampiro!
CAPÍTULO 4
Nunca soube o que Edmond havia feito com o corpo de Gerard. Simplesmente havia desaparecido. Algumas semanas após as minhas núpcias, os vizinhos e parentes, inclusive o meu pai, deram pela falta do meu marido, por isso precisei inventar-lhes que o mesmo havia fugido com uma de suas amantes, logo, não me sentia comprometida com ele.
Passei a viver com quem realmente estava apaixonada, sem que ninguém desconfiasse de sua verdadeira natureza. Mas, não era mais bem vista pelos vizinhos e nem por minha família. Nenhuma casa se abriria mais para mim a partir do momento em que passei a coabitar em pecado com um homem. Bem sabia disso. Muito pouco me importava todos os comentários e julgamentos a meu respeito. Até os comerciantes recusavam-se a vender mercadorias para nós. “Hipócritas preconceituosos!” – respondia-lhes, em pensamento, sempre que me davam as costas.
Edmond era um homem de posses e certamente não nos fez falta alguma o embargo da propriedade do meu ex-marido, pelo meu próprio pai. Vivíamos muito bem em seu confortável “chateau”, a certa distância da aldeia em que eu habitava antes. Como era completamente ermo, foi um lugar perfeito para que pudéssemos nos esconder de todos e viver em paz.
Edmond e eu nos completávamos e não sentia falta de mais nada. Mesmo ainda sendo humana e ele um vampiro, conseguíamos manter relações amorosas sem que ele me machucasse. Com o tempo foi tornando-se relativamente fácil para ele manter o autocontrole sobre seus instintos. E para mim cada vez mais me agradava a idéia de ser como ele.
Certa noite quando estávamos deitados juntos, perguntei-lhe, inusitadamente, se deixaria que experimentasse o seu sangue também.
- É o que deseja realmente?
- Transformar-me-ia desta maneira?
- Não. Seria preciso que antes eu a mordesse e só então provaria meu sangue para que a transformação se completasse.
- Posso provar-lhe sem que te sintas culpado então?
Sem responder, Edmond também se cortou e apanhou com seus dedos uma gota de seu próprio sangue para que eu experimentasse. Tenho certeza que o surpreendi quando ao invés de aceitar a gota que me oferecia, puxei-lhe o braço e suguei o seu corte, tal como ele costumava fazer em mim.
- Não posso acreditar que tenhas coragem para fazer isso, Gabrielle! – exclamou embora demonstrasse também certo delírio.
- Faria qualquer coisa para te agradar, meu amor! Isso me satisfaz também!
Puxou-me de onde estava e novamente nos amamos. Era tudo tão mágico e sublime! Parecia um sonho estar ao seu lado.
***
Algum tempo depois, apresentou-me seus únicos amigos, também vampiros, mas que manteriam segredo para que os outros de sua espécie não me achassem. A mulher era Agnes, sua antiga cunhada, pois havia se casado com seu irmão, ainda há séculos atrás; o outro, Pierre, era um conhecido de apenas algumas décadas e havia se envolvido amorosamente com Agnes, após ela o ter transformado.
Edmond fazia sentir-me segura mesmo se estivesse numa cova, rodeada por leões famintos. Contudo, os moradores da região não aceitavam e nunca aceitariam o nosso “pecado”. Por várias vezes fui apedrejada quando ousava sair, mas evitava que Edmond soubesse para não provocar-lhe a ira.
O cerco contra nós dois fechava-se cada vez mais. A intolerância e o moralismo desenfreado daqueles infelizes não permitiam que eu vivesse com um homem estranho, estando casada com outro. Mesmo habitando o lugar mais distante do vilarejo, era pouco para os que se sentiam ofendidos.
Após tentarem colocar fogo em nossa casa, Edmond percebeu que eu estava me arriscando demais, em viver ali com ele, e viajou para comprar outro chateau, num lugar o mais distante possível para nós dois.
Fiquei sob a companhia de Agnes e Pierre esses tempos e foi justamente durante a sua ausência que descobri crescer em meu ventre uma criança que, diferente das outras completamente humanas, evoluía rapidamente em semanas. Logo, que notei o meu estado, já haviam se passado dois terços do período completo para o nascimento.
Agnes me explicou tudo sobre a gestação peculiar dos vampiros, mas também se sentia insegura, pois não sabia explicar como uma humana daria à luz a uma criança vampira. “Haveria de dar tudo certo para que o meu bebê nascesse lindo e saudável. Edmond ficaria muito feliz com a novidade que lhe aguardava!” – dizia-me o tempo todo
Porém, dias depois, pude experimentar da vil intolerância humana e da maldade que habitava no coração dos homens, tal como Edmond havia prevenido.
Percebendo meu estado gestacional e sem mais suportar a indecência, que para todos eu representava, os camponeses não havia mais do que me acusar senão de bruxaria. Os rumores chegaram à corte, especialmente ao clero, que ainda era implacável com mulheres na minha condição.
Mesmo sob a proteção de Agnes e Pierre, conseguiram me capturar durante um breve momento que eu estava sozinha em meus aposentos. Após invadirem a mansão fui arrastada em praça pública até um esdrúxulo julgamento e, mesmo não sendo mais tão comum a morte de mulheres consideradas praticantes de feitiçaria, fui condenada a morte.
Gritei por misericórdia para que pensassem no inocente em meu ventre, mas foi em vão, pois ainda juraram condenar o meu amante, caso ele aparecesse. Fui levada para uma espécie de calabouço e após vários atos de violência física e sexual, fui atirada em um poço e trancafiada até a morte para que pudesse “refletir sobre os meus pecados e quem sabe assim obter o perdão divino” – como disseram os meus assassinos.
***
Meu espírito ainda permanecia sobre a Terra e pude vivenciar a dor do meu pobre Edmond após o seu regresso. Agnes e Pierre lhe contaram tudo e não previram outra reação, senão a de seu profundo desespero. Em seguida, incitado pelo ódio e revolta, percorreu todas as regiões para descobrir onde meu corpo foi deixado. Com a ajuda de outras criaturas que não precisavam de qualquer pretexto para cometer assassinatos, pôs fim a vida dos que me fizeram mal.
Tentei intervir para que ele não se condenasse ainda mais com tais sentimentos e atitudes, mas a sua dor era tão forte que podia senti-la dentro de mim; e sofria como ele também. Estava revoltada não apenas por minha morte, mas também por nosso filho que não deveria ter pagado por nada!
A raiva tornou Edmond ainda mais forte e impiedoso com os meus carrascos. Não pude impedir que cometesse os crimes, mas, por um momento, consegui me aproximar de seu coração e intervir em seus pensamentos para que não fizesse mais nada, apenas encontrasse os meus restos, já que isso lhe era tão importante. Em meio a seus pesadelos, obtive a chance de intervir através de um sonho e guiá-lo ao lugar onde meu corpo jazia.
Acompanhado de Agnes e Pierre, encontrou o local exato do poço abandonado no qual fui atirada. Eu não saí um só instante junto aos seus pensamentos. Estava ali para evitar que cometesse qualquer insanidade. Jamais esquecerei o desespero e expressão de dor profunda que sentiu ao encontrar apenas o que havia restado do meu cadáver. Olhou-o por alguns minutos e completamente emocionado esbravejou:
- Deus, porque a tiraste de mim? Por que alimentou minhas esperanças de merecer alguma misericórdia? Já havia me conformado em ser a criatura que sou, não precisava de outros motivos para odiar-me ainda mais! Não deveria tê-la deixado! Por que eu a deixei sozinha? Por que não a transformei como tanto me pedia? Poderia ter evitado que se fosse junto com o nosso filho! - gritava e gemia de desespero ao desabafar sua revolta.
Agnes e Pierre assistiam a tudo sem pronunciar uma só palavra, apenas olhavam aquela cena dramática e, comovidos, preferiram não interromper o amigo que chorava compulsivamente.
- Ah! Que castigo cruel me destes! Nem ao menos poderei ir-me junto contigo, meu amor! Condena-me a ficar aqui sem você por toda eternidade! Como puderam fazer isso com uma criatura tão inocente! Era essa a maldade que eu tanto quis te proteger! Foi a crueldade e a intolerância deste mundo que a arrancaram dos meus braços para sempre! Por que tiveste que partir e tornar o meu mundo tão sombrio novamente? – após uma breve pausa ele cerrou os dentes e, trêmulo de raiva, prosseguiu em desabafo – Só tenho meu ódio agora! Odeio ainda mais a humanidade! Haverá desejo de vingança em cada sopro de vida que esta eternidade maldita me reserva!
Aquelas palavras de sofrimento entravam em mim como punhais e me doíam muito mais que qualquer violência que já havia sentido. Como era doloroso vê-lo chorar e saber que não podia abraçá-lo e dizer que estava ali ao seu lado.
Agnes interrompeu o longo silêncio que pairou alguns instantes e, como que tivesse sentido minha dor também, confortou Edmond com um abraço e lembrou-lhe:
- Sabes que ela não gostaria que estivesse assim, ou falasse essas coisas. Jamais culpe outra circunstância senão o destino que ordenou que se encontrassem numa época de tanta intolerância. Acredite que no futuro as coisas podem mudar. Estaremos aqui em nosso eterno limbo, mas ela poderá voltar um dia, Edmond, não esqueça disso! Sabe melhor que eu, pois foi você quem me ensinou a acreditar nas reencarnações humanas.
Edmond, ouvindo tais conselhos, fraquejou em sua ira e parecia acalmar-se aos poucos, deixando que as palavras de Agnes chegassem ao seu coração. Acho que se lembrou que eu havia lhe dito para não desistir de ser salvo. Parecia que a esperança de reencontrar-me um dia vinha-lhe a mente, como uma pequena luz que começava a brilhar naquela escuridão em que se encontrava.
- Ela foi tirada de mim sem que eu pudesse ao menos despedir-me! Fecho os olhos e posso imaginar o seu choro, o seu desespero para que eu viesse buscá-la, mas eu falhei! Eu falhei! Prometi que nada a aconteceria, mas não estava junto dela quando mais precisou de mim! Você pode estar certa, Agnes: não importa o tempo que precise esperar, eu vou continuar aqui à espera de Gabrielle!
Após perceber e sentir que Edmond havia voltado a si, eu pude deixar a Terra e seguir os que me chamavam. Contudo, ainda guardava a preocupação quanto aos atos de cólera que o levaram a matar os meus assassinos. O sentimento de perdão aos meus algozes, que tanto gostaria de sentir em seu coração, eu ainda não pude, mas desejava voltar e continuar o ajudando a caminhar e evoluir junto comigo. Acreditava nele e em tudo que pude ler em seu coração e sabia que possuía uma essência verdadeiramente boa e humana.
Concentrei minhas energias para demonstrar-lhe a minha presença, através do aroma das nossas flores preferidas. Ao sentir o perfume dos lírios que sempre me presenteava, disse-lhe, em pensamento, antes de partir definitivamente:
- Mesmo quando se sentir sozinho, eu vou estar em seu coração! Somos parte um do outro! Ainda que não lembres mais, nesses muitos anos de tua existência futura aqui na Terra, vou ainda estar contigo. Até breve.
França – Versalhes – 15 de dezembro de 1687
Chorei e gritei por liberdade, mas de nada adiantou dentro daquele lugar úmido e sombrio, eu desesperadamente pensava em Edmond e em nosso filho que jamais nasceria. Tive medo da morte como nunca havia sentido antes. As horas de horror que presenciei enquanto estava encerrada naquele lugar terrível foram as piores possíveis, mas o meu corpo já estava muito frágil da violência que sofri e quase não tinha mais ânimo para gritar por ninguém.
- O que eu fiz para essas pessoas? – dizia-me repetidas vezes - Por que o meu erro, ou pecado - como me acusaram – foi considerado tão ferino e alarmante assim? A felicidade, para eles, deveria ser considerada algo muito atroz, luxurioso, indigno... Tudo que com certeza não se parecia com o que Edmond e eu estávamos vivendo. Ah, eu estava tão feliz! Queria tanto ter esse filho! – lamentava, em prantos - Meu Deus, por favor, não me deixe aqui! O que fiz para merecer isso? Foi por me entregar ao assassino de meu marido? Perdoe-me, Senhor, mas não deixe que meu bebê pague por minha culpa!
Eu mesma já tinha presenciado a morte de algumas mulheres, e até homens, sob a acusação de bruxaria, ou incitação ao paganismo. Achava um absurdo tais castigos, mas de certa forma, acreditava que podia ter alguma aprovação divina o que faziam - em nome da igreja - pois não tinha noção de como eram vãs e evasivas as acusações. Podia sentir, naquele momento, dentro de minha alma, a dor e a angustia das inocentes que eram assassinadas. Algumas, queimadas vivas, outras, enforcadas. Muitas das mulheres que foram covardemente perseguidas, provavelmente, não tinham praticado atos de feitiçaria e leviandade argüidos. Algumas foram heroínas por não demonstrarem auto-piedade; outras bradaram por clemência, mas para quase nenhuma das acusadas havia absolvição.
O frio, a fome, a sede e os infortúnios dos ferimentos eram determinantes para o meu desespero. Pelo natural instinto de sobrevivência, eu lutei até minhas últimas forças para tentar escapar. Por horas, olhava os tijolos escuros e sujos que me rodeavam e esperava o meu esgotamento. Outras vezes, me enchia de falsas esperanças e continuava a chamar por Edmond. Mas ele não me ouvia. Ninguém me escutava! Só havia o silêncio pela fresta de luz que me restava enxergar o mundo lá fora. A sensação de impotência diante do próprio desejo de morrer rapidamente, já que não poderia ser salva, era o que me sobrava. O silêncio e o vazio daquele lugar imundo eram apavorantes. Cheguei a acreditar que estava sendo severamente punida por forças celestiais, mas, apesar de tudo, em nenhum momento me arrependi do que havia vivido até então.
Caída ao chão, coberto por lodo e insetos, após dois dias de confinamento, fechei os olhos e rezei para que a morte me levasse logo consigo; e para que Deus tivesse compaixão do meu sofrimento. Não tinha mais expectativa que me encontrassem naquele lugar. Após tantas horas de abstinência, sede e cansaço, sentia que minha vida estava finalmente se esvaindo. Passei as mãos sobre o meu ventre, já bastante volumoso, e pude sentir pela última vez o meu bebê se mexer. Embora ele tivesse o sangue de alguém muito especial, ainda necessitava de minha vida para sobreviver, sendo assim, também se foi junto comigo.
***
Alguns meses atrás...
Não entendia porque uma mulher deveria se casar. O casamento sempre nasce de interesses escusos como: política, herança, mas quase nunca de paixão. Seria até imoral falar de paixão numa França de tantas misérias para a classe mais empobrecida e faminta.
Eu fazia parte do chamado terceiro estado no meu País. O estado que mantinha as classes mais abastadas, como o clero e a nobreza. Estávamos todos condenados aos impostos intermináveis, dízimos, corvéia, obrigações feudais, enfermidades sem cura, tal como foi a peste negra.
Minha mãe foi vítima da doença aos seus vinte e cinco anos de idade, nos deixando sós, a mim e aos meus irmãos. Estes também faleceram um a um, restando apenas meu pai e eu. Vivíamos numa aldeia de artesãos e camponeses e, como todos, passávamos muita fome e necessidades.
O trabalho era dividido por toda família, inclusive entre as mulheres e crianças. As primeiras eram tratadas sem respeito, ou pudor muitas vezes. E quando o era, estavam condenadas a servir seus maridos e filhos até a chegada da morte. Com as crianças também não se tinha o cuidado de poupá-las de trabalhos, ainda que na mais tenra idade. A violência era cotidiana em nossa sociedade. Até mesmo o sexo era praticado sem composturas sociais. A nobreza da corte era a maior referência do belo e do magnífico inatingível para nós.
O casamento, ao contrário do que possa parecer, não era a tábua de salvação. Além de viver em situações precárias, eu precisava de um dote para casar-me bem. Contudo, no meu caso, sempre fui arranjada para o senhor das dívidas do meu pai. Melhor dizendo, o filho dele. O casamento, bem sabia que me traria uma carga enorme aos trabalhos que já tinha no dia a dia.
A lascívia e outros vícios masculinos atormentavam o cotidiano das mulheres, pois não raro elas eram pegas, desprevenidas, e estupradas em campo aberto, ou até mesmo em suas casas. Inclusive algumas por seus próprios parentes!
Mas o coração feminino é também um universo enorme de mistérios, desejos e sonhos. Eu sonhava que meu destino ainda poderia ser diferente. Nunca deixei de querer uma vida melhor, embora as minhas condições de vida fossem precárias. Há muitos caminhos que se segue por falta de escolhas, contudo não haveria de ser o meu caso.
Porém, nenhum problema teria mais importância para mim a partir da noite que conheci Edmond Laforet. Até então nunca tinha ouvido falar dele, ou de sua família. Não sabia sequer o que fazia para ostentar tanto bom gosto e beleza ao vestir-se e ao comportar-se. Pensei que se tratava de um elemento da mais alta nobreza, podendo até mesmo habitar o palácio suntuoso de Versalhes, mas não tinha certeza.
Só bastava-me admirar seu porte imponente e ao mesmo tempo humilde, talvez por uma timidez que lhe marcava o olhar. A sua expressão ambígua era misteriosamente sedutora para mim. Belo e altivo, cativou-me com um sorriso discreto quando me olhou pela primeira vez. Não sabia ainda, mas estava diante do homem que mudaria meu destino para sempre.
Tudo aconteceu quando eu pensava em minha própria vida, deitada sob o leito do refúgio das minhas angústias – o belo riacho que corria perto de onde morava. Repassava o sofrimento do meu pai, as últimas horas de minha mãe, o fato de não ter irmãos para me ajudar no sustento de tudo, isso era repassado, várias e várias vezes, em minha cabeça. Neste lugar era onde eu também ousava ler algumas vezes. Com muita perseverança e ousadia de minha parte, busquei - apesar dos meus trabalhos no campo - a oportunidade de conhecer mais sobre o mundo, as pessoas e as ciências juntos aos livros - que tinha a oportunidade de encontrar no pequeno acervo de alguns burgos para os quais trabalhei.
Levantei num susto e me dei conta que não poderia estar mais tão sozinha ali. Tratei de sair apressadamente, pois tinha medo do mal que poderia acontecer se fossem homens que se aproximavam, mas não tive tempo de recolher minhas coisas. Era tarde demais. Percebi que dois senhores olhavam-me como se fossem devorar-me com os olhos. E não foi preciso ser muito inteligente para entender o que tinham em mente.
Tentei correr do jeito que estava, mas não consegui ir muito longe. Machuquei minha cabeça em um galho durante a fuga e, mesmo sentindo o sangue escorrer pelo rosto, eu busquei ajuda na esperança de que alguém piedoso pudesse ouvir meus gritos de socorro. Não poderia encontrar palavras para descrever com nitidez os exatos minutos de pavor que senti naquele momento que, jogada ao chão, me debatia por liberdade.
Cansada e sem forças para lutar contra os dois ao mesmo tempo, desejei a morte daqueles infelizes por alguns segundos e, imediatamente, lembrei-me de rezar para que um anjo aparecesse e me salvasse, enquanto eles arrancavam-me as poucas vestes.
Fechei os olhos para esquecer onde estava quando, de repente, surgiu um rapaz de trajes nobres que lançou os dois homens violentamente para longe. Se não tivesse visto com meus próprios olhos, não acreditaria. O desconhecido que acabava de me salvar era extremamente forte! Logo, todos haviam desaparecido. Tive tempo apenas de escutar gritos ao longe. Olhei para os lados para entender o que tinha acontecido e só escutava o barulho de desespero dos homens e o grunhido, como de um animal selvagem.
Assustada, mas aliviada ao mesmo tempo, me recompus como pude e levantei depressa. Tentei correr o mais rápido que pude, mas como o meu ferimento doía demais, eu parei um pouco para suportar seguir em frente e foi quando o vi. O mais belo cavalheiro que meus olhos já viram e, também o meu salvador aquele dia, estava diante de mim. Parecia um sonho encontrar aquele belo rapaz apesar de uma situação tão apavorante pela qual estava passando.
O moço bem vestido parecia estar hipnotizado momentaneamente, pois me olhava com seus olhos escuros e bem intensos. Os cabelos lisos e compridos, a pele branca e aparentemente limpa, o corpo esbelto e alto, era o conjunto perfeito para que eu ficasse completamente atônita ao admirá-lo.
Senti-me constrangida por alguns momentos devido à forma com que fitava o meu busto seminu, bem como a minha boca, com um ar de fome, aparentemente. Após um tempo percebi que ele reparava no sangue que escorria de meu ferimento. A minha respiração ofegante parecia estar exalando um cheiro que lhe agradava aos sentidos.
Após essas percepções, a primeira coisa que me veio à mente foi a possibilidade do mesmo ser uma espécie de vampiro. Já tinha ouvido falar na epidemia destas criaturas pelo oeste europeu. Muitos relatos de casos de ataques a humanos, vivos ou mortos eram divulgados. Além disso, relatórios médicos ajudavam a alastrar que estas criaturas estavam à solta entre nós. Somando-se à fome e às doenças, os vampiros poderiam ser um dos principais causadores de tantas mortes em nossa região. Mesmo sob essa suspeita, eu esperei para ver o que aconteceria e não tive medo, pois não esperava que a fera misteriosa pudesse ser aquele belo nobre. Poderia ser o anjo por quem rezei há pouco. Que tolice a minha! – pensei.
Aproximou-se devagar, sem tirar os olhos dos meus. Agora parecia um misto de ternura e pena que ele demonstrava. Acariciou o meu rosto sem dizer uma palavra. Eu podia ouvir meu próprio coração de onde estava, de tão forte que batia. Percebi que ele havia notado o meu fascínio, mas eu estava paralisada como se estivesse sob um encanto.
Deixei que tocasse o meu ombro para sentir o fio de sangue que descia sobre ele. Logo após, levou as mãos à boca e provou-o delicadamente. Foi quando me assustei de verdade. Olhou nos meus olhos novamente, pensei que fosse me beijar, mas ao invés disso arrancou um dos mais belos exemplares dos lírios que havia a nossa volta e me ofereceu, interrompendo seu silêncio com uma voz segura e, ao mesmo tempo suave.
- Acaba de me acertar, como um raio de sol, atravessando as trevas que me encontro. Você é perfeita, tal como essa pequena criação feita de pureza, inocência e beleza. – disse ao fazer-me uma reverência.
Eu fiquei enternecida com aquele gesto. Nunca havia recebido qualquer flor em minha vida. Muito menos através de uma atitude tão singela e espontânea.
- Obrigada, mas por que falas assim? Posso ser casada... Posso não ser pura. Como me julgas sem me conhecer?
- Ainda assim seria pura, pois é uma pureza d’alma e não da matéria a que me refiro, nobre dama!
- Zombas de mim? Acaso não percebestes minhas humildes vestes? Sabes que não sou uma dama, cavalheiro! Por acaso, foste tu quem me salvaste agora há pouco?
- Não. Eu quem fui salvo neste dia, pois nunca houvera visto uma criatura com tantos encantos, beleza e ternura tal que me fizeram recuar de meus torpes propósitos – dizia com um olhar deslumbrado.
- Por que sentiste o meu sangue? – perguntei-lhe, mas com medo da resposta.
- O que provei foi muito pouco perto do que gostaria ... Parece que não credes no que acaba de incitar dentro do meu pobre peito. – ele continuava a declarar com uma voz exultante.
- Por favor, o senhor estar sendo impetuoso demais! Se veio para me fazer mal tenha piedade e desista, caso contrário agradeço por me ajudar, mas peço que se afaste e me deixe voltar para casa de meu pai!
- Eu sinto muito se lhe assustei. Sinto-me perdido no que dizer exatamente... Não vou lhe fazer mal algum! Deixe-me apenas olhá-la mais um pouco, penso que poderia não voltar a vê-la e tenho medo de esquecer esse semblante tão admirável.
Aquelas palavras pareciam entrar no meu espírito. Senti uma vontade imensa de beijá-lo, mas contive meus pensamentos absurdamente insanos e apenas o olhei fixamente como se quisesse transparecer o que eu estava sentindo. Parecia saber, pois não parou de aproximar-se e quando estava bem perto dos meus lábios, sedentos por um beijo, mais uma vez fechei os olhos e fui surpreendida por sua ausência. Abri os olhos e o procurei ao redor, mas não vi mais ninguém, exceto o vale vazio novamente.
***
Passaram-se alguns dias, mas meus pensamentos ainda estavam naquele belo rapaz. Mesmo ocupada com minhas tarefas, meu coração encontrava alegria quando se lembrava do seu sorriso. E tinha o olhar mais ardente que já vi! Não tinha dúvidas de que havia me apaixonado por ele, mas onde encontrá-lo? De onde teria surgido? De fato foi meu salvador aquele dia? Não poderia supor que fosse um malfeitor qualquer, pois não me fez nada além de me envolver perdidamente por suas palavras.
Minhas esperanças de reencontrá-lo já estavam se esgotando. Cheguei a pensar que ele de fato poderia ter sido um anjo e não voltaria mais à Terra. Mas era tolice minha pensar assim, porque um anjo jamais me olharia com aquele semblante de desejo. Alimentava minhas expectativas em vê-lo de novo, por isso, voltei algumas vezes ao mesmo riacho, mas desta vez não mais arrisquei demorar-me para evitar problemas.
Continuava a rotina de afazeres diários, desdobrando-me em atividades domésticas e no campo, onde plantávamos praticamente todo nosso sustento. Eu tentava manter minhas roupas apresentáveis e pele limpas, mas não podia dar muita atenção a isso já que, além de pouco tempo, mal havia dinheiro para comprar os mantimentos que nós precisávamos para sobreviver. Portanto, estava sempre maltrapilha. Pensando em como eu me vestia e me comportava, deduzi que era uma realidade bem distante daquele homem misterioso.
Conformada com a minha situação, tentei esquecer o assunto. No entanto, numa tarde escura, estava sozinha debruçada sobre o poço - que era compartilhado por alguns vizinhos - e puxava o balde com a água necessária para o preparo da refeição naquele dia. Contudo parecia que haviam trocado o recipiente, pois ele estava mais pesado que o de costume e eu precisava me esforçar em dobro para erguê-lo. Quando tomei um susto ao sentir que alguém surgia atrás de mim e segurava minhas mãos, ajudando-me com o peso. Imediatamente, soltei a corda com a qual puxava o balde. Foi então que o mesmo nobre de antes evitou que a água voltasse ao fundo do poço.
- Quase me matou de susto! O que faz aqui? – perguntei-lhe, assustada, mas imensamente alegre por vê-lo de novo.
- Eu não a estava seguindo, se é o que temes, mas não pude resisti a vir ajudá-la...
- Como... Como soube que estava aqui? Não é muito comum senhores de sua estirpe passarem por essa região!
- Eu sou um tanto incomum! Como também não é costume, donzelas passarem longos tempos sozinha, à beira de riachos ...
- Eu não fico lá por muito tempo e... Espere, como sabe disso também?
- Já que me fazes tantas perguntas... Posso fazer-lhe uma? – interrompeu-me sorrindo, mas com um ar seguro.
Respondi com a cabeça que sim.
- Como posso voltar a vê-la mais vezes? Se for esse o seu desejo também, claro!
- Não imagino o que está pretendendo com essa pergunta, mas afirmo que sou prometida. E meu pai...
Naquele momento fomos interrompidos por risadas de alguns camponeses que se aproximavam. Virei-me e quando voltei para continuar a responder-lhe, não estava mais lá.
Bastante impetuoso e atrevido! – pensei. Mas de toda forma ele já havia me conquistado com seus encantos. Vivia rodeada por homens tão maltrapilhos quanto eu, que era quase um adorno para meus olhos apreciar alguém tão belo, limpo e, aparentemente, saudável.
Senti-me tão tola por não ter dito quando me ver novamente! Queria ter-lhe confessado muitas coisas. Inclusive havia esquecido de agradecer a ajuda que me prestou naquele dia. Estava insegura, pois nunca havia conversado com alguém tão importante, antes. Ao mesmo tempo não queria demonstrar minha pouca idade e meus medos. Ele deveria ter, mais ou menos, uns vinte e cinco anos e eu tinha apenas dezesseis, recentemente completos.
Para alguém, tão jovem quanto eu, que precisou amadurecer, prematuramente, enterrando boa parte de seus dias tenros da infância; as declarações de Edmond eram quase como uma luz, que enchia de vida e esperança o meu futuro já fadado a servidão ao homem que seria o meu marido.
Ele parecia ser diferente. Mesmo sem o conhecer direito, pude perceber que havia algo especial nele. O meu coração nunca havia se apaixonado antes. Estava desabrochando para a vida e para as pessoas, como uma flor que se abre para os primeiros raios de sol de uma primavera. Meus sonhos eram tão puros! Tão cheios de inocência e amor! Estava completamente indefesa e vulnerável a me apaixonar.
Retornei para casa pensando na porção de coisas que deixei de dizer e perguntar. Por outro lado lembrei que não poderia sonhar tão alto. Meu casamento já estava marcado há algum tempo e meu pai não via mais a hora dele acontecer. Por ele, eu deveria ter me casado aos doze anos, mas meu futuro esposo ainda não tinha condições de terminar a casa que iríamos viver, logo, tive que esperá-lo. Por certo aquele nobre não pensava em casar-se com uma simples camponesa, portanto, mais uma vez tentei dissuadir meus pensamentos.
Certa noite quando me preparava para descansar de mais um dia de bastante trabalho, admirava através da janela, a escuridão lá fora e escutava apenas os sons dos animais noturnos que pareciam reverenciar as trevas.
Senti uma alegria estranha e uma atração súbita para ir ao encontro daquela “festa” iluminada apenas pela luz da lua cheia que apontava no céu estrelado. Ao ar livre, mesmo estando frio, deixei que a brisa da noite penteasse meus cabelos, quando alguém sussurrou próximo ao meu pescoço:
- Não pude resistir a encontrá-la novamente.
Reconhecendo aquela voz, após alguns instantes de susto, não precisei virar-me para ter certeza de quem se tratava. Meu coração quase saltava para fora do peito, logo senti um arrepio por todo corpo como num choque delicioso. Havia algo naquela voz que nitidamente me seduzia.
- Desejei tanto que viesse! – disse-lhe sem mesmo acreditar que tinha tido coragem para falar assim.
- Eu escutei o seu chamado e também desejava reencontrá-la. – respondeu carinhosamente.
- Nem ao menos sabe quem eu sou, ou meu nome ...– disse ainda de costas para ele.
- Você também não sabe nada sobre mim e me chamou mesmo assim.
- Posso ter desejado vê-lo, mas só em pensamento. Não sabia qual nome lhe dar...– disse, virando-me lentamente.
Ao olhá-lo de frente, reparei que me trazia novamente um pequeno lírio nas mãos, semelhante ao que me entregou quando nos vimos na primeira vez.
- Edmond Laforet - disse num sorriso, ao beijar-me a mão, num gesto suave - E você é Gabrielle Louvain.
- Como sabes?
Sem responder, ele olhou-me com o mesmo olhar intenso de antes e aproximou-se devagar.
- É como se tivesse roubado a minha vida e o meu coração no instante em que a vi, Gabrielle!
- Quem tu és? De onde vieste?
- Só posso responder que me encantei por ti, como só a mais insana das criaturas poderia, pois mesmo correndo tantos riscos, vim ao teu encontro. Não pude mais suportar a vontade de vê-la outra vez!
- Sabes bem o que está dizendo? Não podes estar sendo sincero... sou bem diferente de...
- Estou aqui não estou? Venci meus próprios desafios para estar aqui com você agora!
- Quais desafios? Das castas que nos separam? Não compreendo...
- Eu te livrei daquelas criaturas, mas não imaginas o que tinha em mente para ti naquele dia... no entanto quando a vi fui traído até pelo meu próprio instinto. Previ, naquele instante, que estava diante do anjo que me roubaria o coração, pois encontrei na tua aparente fragilidade a certeza que nunca mais seria o mesmo. Arrebatastes tudo que tinha com apenas um olhar! Senti o seu perfume e após isso soube que era hora de me afastar, já que não tinha mais outros pensamentos senão os de...
-Está sendo impetuoso outra vez... Não sei o que quer dizer. Embora queira lhe perguntar tanta coisa... ao mesmo tempo tenho medo de saber as respostas! Fala de coisas difíceis para minha compreensão! Às vezes acho que está brincando comigo...
- Diga apenas o que sentes por mim e já partiria satisfeito.
- Não, eu não quero que vá! Esperei-te tanto! Quer dizer... eu gosto quando vem me visitar...
- Não sabes o que pedes! Pode estar correndo um grande perigo nesse momento...
- Não tenho mais medo! Se quisesse me fazer algum mal já o teria feito antes. Não sei o quer de mim realmente, mas não tenho muito a lhe oferecer, a não ser minha eterna gratidão por me ter salvo e...
Sem coragem para terminar o que ousaria lhe dizer, abaixei os olhos e fiquei visivelmente constrangida.
- Não diga mais nada! Não quero aumentar tuas esperanças por um possível matrimônio entre nós, mas também não quero desiludir-te por achares que não te considero para tanto. Eu tenho sentimentos por ti o suficiente para não deixá-la nunca mais. Só não me peças o impossível.
- Porque impossível? Já és casado, ou se considera nobre demais para aceitar o enlace com alguém de minha estirpe?
- Sou casado apenas com os meus instintos e este é meu eterno fardo.
- Não me importa sobre o que estejas falando... Sei apenas que você apareceu como uma luz em minha vida e despertou sentimentos que nem sabia existirem!
- Não me compares a uma luz! Sou longe de ser um homem, muito menos algo iluminado! Iria me odiar se soubesse a verdade!
Sem tanta inibição de minha parte, segurei-lhe o rosto próximo ao meu e confortei-o.
- Sei que parece uma insanidade dizer agora que te amo, mas... eu não me importo mais! Posso e quero ser tua, Edmond! Prometo aqui e por todos os santos que vou estar com você por toda eternidade! Não me interessa quem és, pois tenho certeza que o amo e só isso me basta saber!
Após dizer isso eu tentei beijá-lo, mas inesperadamente afastou os meus lábios.
- Se souberes quem sou prometes que ainda assim teria coragem de me dar este beijo?
- Não me iria dizer que tens alguma doença, por certo? O que poderia ser de tão asqueroso assim? - hesitei por um momento e perguntei - Seria a peste?
- Eu possuo uma doença incurável... Uma doença que me macula a alma, o corpo e agora, mais do que nunca, o coração, pois sei que estou prestes a ouvi-la retirar cada palavra de amor que disseste – disse-me profundamente consternado.
- Tire esse medo do seu coração e confie em meus sinceros sentimentos! São reais! E os seus? O que sentes por mim também é real?
- Não faz idéia do que perguntas...
- Não desvie do que temes em me dizer. Não sentes o mesmo, não é? Estou apenas sonhando? Ah, Edmond, não imaginava que alguém como você pudesse surgir para mim um dia! Quando o vi naquele riacho, parecia um anjo! Tão belo! Tão...
- Chega. Gabrielle, escute ...
- Não! Você deve ouvir o que tenho a dizer. Tem idéia do que representou cada palavra que disseste para mim desde que nos conhecemos? Antes, só sonhava com o meu destino mergulhado em tristeza e melancolia. És diferente dos outros...
- Estás condicionando tua felicidade a mim. Não faças isso. Ninguém é responsável pela felicidade do próximo. Por mais que diga agora o que queres ouvir, será sempre a única encarregada por tuas escolhas. Ah, minha querida, há tanto para explicar... Por enquanto esteja certa de que não posso permitir que confies teus sonhos românticos a um estranho que...
- Mesmo que esse estranho esteja à minha frente tentando me proteger dele mesmo? Eu não estou lhe entendendo mais! Primeiro me envolve com aquelas belas declarações, agora diz que são apenas sonhos românticos?
- Foi um erro talvez. De minha parte, devo admitir. Sou obrigado a ser franco contigo, se desejo que não me odeies um dia – tocou em meu rosto, suavemente e continuou – Também me apaixonei por ti. Seria impossível não se encantar por tão belo rosto, pela tua alegria! Como gostaria de simplesmente abraçá-la e dizer tudo o que sinto dentro de mim!
Ao confessar isso, não deixei que continuasse mais. Sorri tampando-lhe os lábios.
- Então faça. Não pensemos em mais nada! – disse abraçando-o suavemente.
Em seus braços pude sentir o quanto seu corpo era aconchegante. A miscelânea de cheiros e a diferente temperatura que ele possuía foram confortantes para meus anseios. No mesmo instante tive a segurança que sempre almejei. Sua respiração, perto de meu ouvido, me levou a uma viagem surpreendente em meus pensamentos. Tive a certeza de que precisaria daquilo pelo resto da vida. Ele me enlaçava com toda força de seu coração também. Só Deus poderia ser testemunha do que se passava dentro de nós naquele momento, e do que eu seria capaz de fazer para que este instante fosse eterno.
***
Conversávamos por horas, sempre ao entardecer e em locais secretos. Mas qualquer lugar era sagrado quando estávamos juntos. Estava cada vez mais apaixonada. Contava-me histórias engraçadas e surpreendentes, repletas de mitos e heróis. Adorava cada palavra!. Parecia ser tão vivido e experiente! A impressão que tinha era que o conhecia há muito tempo, pois até seus gestos me eram familiares. Também lhe falava muito de minha vida e do que sonhava para o futuro. A nossa realidade parecia ser diversa, mas ao mesmo tempo próxima e similar. Crescia em nós uma nítida necessidade de estarmos perto um do outro a cada dia.
Através do seu jeito doce e espontâneo, reencontrei a criança que adormecia em mim e descobri a mulher que há muito gostaria de conhecer. Brincávamos e nos divertíamos muito pelos campos das redondezas. Estávamos sem medo, ou vergonha de demonstrar o que éramos por dentro. A nossa alegria era traduzida em nossos olhares e vibração por estarmos nos conhecendo pouco a pouco. O som da sua voz, o brilho dos seus olhos, tudo era como um relicário. Via, em cada sorriso seu, uma luz iluminando minha vida. Como poderiam caber tantos sentimentos assim dentro de um mesmo coração? – perguntava-me em pensamento.
Tentava refrear minhas inseguranças quanto a reciprocidade do que estava sentindo, acreditando que Deus não plantaria uma semente de um amor tão grande, se esse o mesmo não fosse correspondido de alguma forma. Estava vivendo o mais doce sonho até que as coisas começaram a tornar-se reais demais para mim.
- Gabrielle, escute, não sei qual seria a melhor oportunidade para contar-lhe o que preciso. Existe algo que precisa saber, que poderá mudar tudo que sentes até então. Nada irá transformar o que já despertastes em mim, mas só caberá a ti julgar o que estás prestes a descobrir - parou por um instante e, bastante sério, olhou bem em meus olhos e pude ver nos seus um brilho estranho.
- Está me deixando nervosa.
- Já ouviste falar, ou acreditas, de alguma forma, em seres que não sejam totalmente humanos? Como feras, ou animais que devoram suas vítimas, esmagando a jugular, através das presas, até sentir o último fio de sangue que corre por ela se esvair lentamente, carregando consigo o derradeiro sopro de vida que lhe resta...
- Do que está falando? Eu... não entendo! – afastei-me como num susto.
- Não sou... o que pensa, Gabrielle. Não sou... – virou-se de costas, como se sentisse vergonha do que estava por dizer – Talvez nem mesmo seja mais... humano – completou ao respirar fundo.
Ouvindo aquilo achei que estivesse brincando.
- Não percebes que está me magoando falando desse jeito? Como não haveria de ser humano? Eu estou o vendo aqui e... Acaso pensas que sou tola?! Ainda está zombando de minha ingenuidade? Está dizendo isso para assustar-me. No que quer que eu acredite?
Hesitou por um instante e continuou:
- Só tenha certeza que não sou um monstro! Não como poderia imaginar... – refletiu por alguns segundos e, buscando fôlego e coragem para continuar o que estava prestes a revelar, disse seriamente. - Estou a séculos neste mundo e já cometi muitos erros. A minha natureza não me deixa muitas escolhas... Já fui um homem normal quando pude desfrutar da dádiva de estar vivo, mas isso me foi roubado por um ser atroz, que não me poupou do sofrimento de tirar o que tinha de mais valioso: a vida.
Fiquei perplexa com que ouvia. Não disse mais nada. Estava perturbada e confusa, pois era estranho demais acreditar no que me dizia. Apenas, sabia que poderia ser tudo, menos um monstro, o dono de tão belas palavras.
- Eu não acredito que você possa ter cometido tantos erros assim... Tens um olhar tão puro! Além disso, estás vivo! Como falas em ter morrido e ter vivido por séculos?
- Possuo sentimentos, mas num corpo de uma fera insana! – interrompeu-me, um pouco mais agressivo.
- Você está enganado! Posso não conhecer muito dos homens e da maldade que habita neles, mas eu reconheço quando vejo alguém tão bom quanto você. Sinto-me abençoada por ter te encontrado. Seus olhos não deixam que continue mentindo sobre sua verdadeira índole. Tenho plena confiança que falo com um homem de puro coração...
Sem que me deixasse continuar, ele me abraçou como um menino assustado que acabava de encontrar consolo. Apertava-me com tanta força, que quase senti sufocar-me.
- Eu também preciso que me salve! – sussurrou em meu ouvido.
- Estou aqui agora... Seremos só eu e você, juntos! – tentei confortá-lo.
- Não desista de confiar em mim, não desista de acreditar em estarmos juntos, haja o que houver! – suplicou com uma voz trêmula.
Dizendo isso desapareceu com a névoa da escuridão.
***
Sonhava com Edmond todas as noites a partir dali. Não apenas com seu belo rosto, mas também com suas palavras e todo o mistério que o rodeava. Pensei muito, também, em tudo que havia dito. Inclusive que temia me perder caso revelasse a verdade sobre criaturas como ele. “Do que ele poderia estar falando? - perguntava-me.
Quanto mais eu tentasse entender do mal a que ele se referia, eu descobria que não poderia imaginá-lo de outra maneira senão o de o homem certo para minha vida. Tudo nele me convidava a amá-lo, sem me importar com mais nada.
Sabia que poderia tratar-se de alguém diferente, mas o que poderia fazer àquela altura? Estava apaixonada por ele! Como era bom tudo o que estava sentindo! A mistura de desejo que tomava conta do meu corpo e a alegria que invadia minha alma era sublime!
Desejei muito que retornasse a me visitar. Sempre que meu pai adormecia, ia até a janela e esperava por ele, mas os dias se passaram e não pude vê-lo mais. Voltei a ficar triste e sem estímulo para mais nada. As coisas não poderiam ficar piores quando fui surpreendida com a antecipação da data do meu casamento com Gerard Godin.
- Por favor, meu pai, livre-me deste destino! Não pretendo casar-me com ninguém! – supliquei assim que soube.
- Estás louca? Como não pretendes casar-se com ninguém? O filho do senhor Godin irá desposá-la em breve e poderemos ter uma vida melhor, estúpida! Não terei mais que sustentá-la sozinho, do contrário morreremos todos de fome! – respondeu-me grosseiramente.
- Sabes que trabalho muito! Não é verdade o que dizes! Queres que me case para que lhe perdoem as dívidas!
- Petulante! Mesmo sendo verdade, estaria certo em assim fazê-lo, pois as dívidas feitas foram para o nosso sustento, portanto é tua dívida também, nada mais justo que pagues. Ao menos, Gerard abriu mão do teu dote! Ademais, é um bom moço e confessou que estava encantado com vossa formosura. Fiz um excelente negócio para tua vida e é assim que me agradas? Não vou viver por muito tempo. Vais precisar arranjar alguém que te sustente...
Não quis ouvir mais nada e preferi chorar sozinha. Parecia que tudo estava perdido, agora. Edmond me abandonou, estaria destinada a ser de outra pessoa até o fim de meus dias e não via saída para fugir de tal compromisso, a não ser que morresse. Nunca pensei tanto na possibilidade de morrer até então.
A data do casamento foi acertada e mesmo assim ainda tinha esperanças que Edmond aparecesse e de certo fugiria com ele. Estava decidida.
Num entardecer, quando o sol preparava-se para repousar, fui surpreendida com a visita inesperada de meu noivo. Não sabia o que tinha vindo fazer em minha casa àquela hora. Estava só e não poderia receber visitas, principalmente as dele.
- Gabrielle! – gritou ele à minha porta.
- Na qualidade de meu noivo, senhor, sabes que não posso convidá-lo a entrar, estou sozinha. Peço que volte outra hora.
- Não vou me demorar. Estou ferido e necessito apenas de alguns curativos. Sei que não me negaria ajuda numa situação dessas.
- Entre, mas que seja breve, logo meu pai estará de volta e...
Ao vê-lo, fiquei impressionada com o jovem rapaz quando abri a porta. Por incrível que pareça eu ainda não o conhecia e era bem diferente de como eu o imaginava. Era razoavelmente bonito e falava a verdade quanto ao ferimento em seu braço.
Limpei suas feridas e tentei não dar-lhe qualquer intimidade para falarmos de outros assuntos. Apesar de atraente, não conseguia imaginar-me casada com outro homem senão Edmond.
- Sempre fui apaixonado por ti, Gabrielle! Ainda menino sonhava com este dia. És a moça mais bonita de toda França! – disse, ao aproximar-se com olhos de cobiça.
- Ora, senhor Gerard! Deixe de tolices! Todos souberam de suas aventuras amorosas com as cortesãs... – retruquei, me afastando para trás.
- Minhas aventuras não dizem respeito a você! Irá casar-se comigo! Serás minha em breve. Por que não aproveitamos que estamos sós para...
- Pode-se ver o amor que me tens senhor Gerard! – comentei com ironia - Agora peço que se retire antes que meu pai retorne e nos encontre à sós. Estaria desfeito o acordo se tentasses algo antes da hora! – respondi-lhe, afastando-o ainda mais.
CAPÍTULO 2
Semanas se passaram sem que Edmond aparecesse. O procurei por toda a região e ninguém tinha ouvido falar dele por ali. Infelizmente, havia chegado o dia de meu matrimônio e, portanto, restava pouco tempo para que minha condenação se consumasse Lembrei-me novamente de Edmond. Como eu estava decepcionada! Havia me iludido com suas palavras, mas ainda acreditava que pudesse aparecer num último minuto antes da cerimônia, talvez. Nutria esperanças de que algo pudesse impedir minha desgraça, mas ela finalmente aconteceu, sem que eu tivesse como escapar.
Após haver casado com Gerard tive que segui-lo para a casa que havia construído para nós. Logo mais, ao cair da tarde, à noite se aproximava e perto de consumar minhas núpcias, parecia que caminhava para minha morte. “Antes estivesse sem vida, que condenada a deitar-me com quem não amo!” – disse em pensamento. Ele ordenou que me despisse e esperasse por ele. Obedeci a suas ordens e o esperei no quarto, mas apaguei todas as velas para que ao menos não enxergasse seu rosto ao me tocar.
Após vários minutos de silêncio, como numa brisa de vento, senti o perfume das flores que Edmond sempre me trazia: lírios. Em seguida sua voz cortou o sossego daquele recinto.
- Estou aqui, Gabrielle!
- Edmond! É você? – perguntei assustada.
- Tentei resistir, mas não podia suportar mais!
- Por que não vieste antes?
- Como poderia viver sabendo que não seria mais minha? - disse ele, com a voz serena como de costume e já bem perto de meu rosto.
- Estás louco! Meu marido está vindo, precisas se esconder... Aliás, não sei... Como conseguiste entrar aqui?
- Não temas mais teu marido, Gabrielle! Nunca mais verás este homem.
- Do que está falando? O que fez com Gerard? – perguntei assustada.
- Esqueça-o! És minha agora. – seus olhos brilharam no instante em que transpareceu certa raiva por eu ter demonstrado preocupação com meu marido.
- O que você fez, Edmond? Por Deus não me diga que...
- Avisei-te quem era quando prometeste amor eterno. Mataria tantos outros que ousarem tirá-la de mim! – pronunciou friamente.
- Não é possível! Como, como... fez isso? – perguntei-lhe horrorizada.
- Sou um animal, faminto por sangue, Gabrielle! Já havia tentado lhe dizer isso antes. Eu sinto muito por ser assim, mas este sou eu e estou aqui diante de ti pronto para qualquer julgamento, ou... repulsa de tua parte. Só não suportaria ver-te com outro e não fazer nada. Tentei afastar-me de meus sentimentos, mas não fui forte o bastante.
Reparando que eu estava despida sob um lençol, olhou-me novamente com o antigo ar de “fome” e continuou.
- Não consigo evitar meus desejos e sufocar a imensa atração que sinto pelo teu corpo, pelo cheiro que exala das veias... a sede que tenho de provar-te! – pronunciava tais palavras com seu hálito embriagante e sedutor, mas refreei-o antes que me beijasse.
- Agora estou realmente assustada, Edmond! Tu és um assassino!
Neste momento ele me olhava nos olhos através da pouca luz que invadia a janela daquele aposento e percebi que seus olhos estavam mais iluminados que antes.
- Não te esqueças do que te disse no nosso último encontro. Já tirei muitas vidas. Não sem algum propósito, mas... por falta de escolhas. Às vezes faço para sobreviver, sendo rendido pela minha desprezível natureza e somente atinjo os que cruzam o meu caminho... Contudo, confesso que desta vez tive prazer em afastá-lo de ti! Não percebe o ciúme que sinto, Gabrielle?
- Mas não viestes mais, nem me procurastes, ou ao menos tentou impedir meu casamento! Bastaria isso para que eu não estivesse aqui, então não precisaria fazer nada que...
- Há poucas noites pude escutar tuas preces me chamando. Pude sentir tuas lágrimas, pedindo para que viesse, mas eu não podia vir, tinha medo. Um medo que nunca experimentei antes. Mas não suportaria perdê-la para ninguém, nem que para isso tivesse que dar minha própria vida se possível fosse! Nem pense em ser de outro além de mim! – afirmou com um impulso de me beijar, mas o refreei mais uma vez.
- Para viver contigo preciso saber toda a verdade. Quem és afinal?
Ao invés de me responder ele afastou-se um pouco e, lentamente, mostrou-se de uma forma na qual eu nunca tinha visto nada parecido. Seus olhos brilharam mais que nunca e seus caninos superiores aumentaram um pouco, mas não de forma assustadora. Pelo contrário! Combinavam perfeitamente com seu rosto magnífico e sua pele clara. Em nada me pareceu com um monstro, ou uma fera. Parecia estranho, mas senti uma excitação inexplicável e uma volúpia percorreu meu corpo. Ao contrário do que poderia ser o esperado naquele momento, eu não tive medo algum. Perplexa por alguns instantes, fiquei a apreciá-lo sem dizer mais nada, até que, por um sobressalto em meus sentidos, deixei vir a tona o pouco do instinto de sobrevivência que me restava.
- Então esta é a tua natureza real? A de um assassino frio? Como podes ser um... vampiro? Não posso crer!
Permaneceu imóvel, sem dizer uma palavra. Olhava-me nos olhos como se estivesse preparado para ouvir as piores coisas. Devido ao seu silêncio, continuei.
- Se és assim, devo estar correndo perigo?
- Não. Estranhamente, consigo afastar o lado negro de minha alma quando estou perto de ti. É como se meus instintos se acalmassem. Sinto que, com você, não farei mal a ninguém...
- Acabaste de matar uma pessoa, e por mim, Edmond! – perguntei, demonstrando indignação.
Após alguns segundos de suspense, ele abaixou a cabeça, segurando-a com as mãos. Foi quando percebi que ele estava nitidamente atordoado. Em seguida fitou-me, novamente e prosseguiu.
- Eu sinto muito... – respirou fundo - Deves estar certa, em achar que corre perigo. Talvez nunca consiga ser alguém melhor do que sou agora. Embora... embora eu queira, desesperadamente, tentar... – confessou, com os olhos marejados, apesar de sua expressão, aparentemente séria e fria.
- Disse que não pode ignorar a tua verdadeira natureza. Como posso confiar no que me dizes agora?
- Eu não sei... estou muito confuso também. Não sei mais o que pensar, ou que dizer a você. – refletiu um pouco – Se estiver contigo, de alguma forma, sinto que tudo ficará bem.
Aproximando-me, devagar, de seu rosto segurei sua mão e confessei, um pouco emocionada:
- Edmond, estaria mentindo se dissesse que não sinto a mesma coisa. Apesar dessa revelação, é certo que sempre tentou me prevenir, mas... enfim, mesmo sabendo de tudo isso, agora, eu não tenho saída. Já sou tua, meu amor! Desde que trocamos o primeiro olhar eu soube que este dia iria chegar. Algo sussurrou em minha mente que a partir daquele instante minha vida nunca mais seria a mesma. Vejo que estava certa. Sinto-me pequena diante da tua imensidão. Precisaria ser burra, ou estúpida para te deixar partir por teres me dito a verdade, apenas. Se, está aqui, revelando algo tão sério, que poderia ser determinante para ficarmos juntos, deves ter sentimentos quase tão profundos quanto os meus...
- São muito maiores do que podes imaginar, Gabrielle! – interrompeu-me num ímpeto de emoção.
- Eu sei. Imagino que sejam – respondi-lhe, emocionada também - Nem todas as pessoas possuem o privilégio de saber porque vieram ao mundo, porém, eu agora sei. Nasci para você. Não importa o que seja, ou sob que forma me encontrou. O importante é que estamos juntos. Posso ver em teus olhos que precisas de mim, assim como eu também necessito estar contigo para poder estar viva, porque somos parte um do outro. Jurei te seguir onde estiveres e nunca mais estarás sozinho. Não poderia mais voltar atrás – suspirei numa breve pausa e aproximei-me ainda mais - Deixe-me ser tua, Edmond! – sussurrei-lhe, próximo ao ouvido.
Segurou-me em seus braços com força. Sua pele me fez estremecer. Poderia estar caminhando para minha própria morte, mas estava em êxtase, portanto, seria uma morte doce e prazerosa, naquele momento. Não impedi que apreciasse o cheiro de minhas veias que latejavam ao ritmo do meu coração disparado. Cheguei a pensar que iria finalizar o que temia, mas ao invés disso puxou meu rosto e me beijou suavemente como se degustasse uma fruta suculenta aos poucos. Foi um beijo lento e delicado. Foi uma mistura de paixão e libido que pairava entre nós. Seus lábios tornaram-se quentes e sua pele também me aqueceu. Pude sentir que sua temperatura aumentava a cada momento que me empurrava contra si, em um abraço arrebatador.
- Preciso parar! – gritou afastando-se um pouco – É mais tentador que poderia imaginar! Posso sentir o teu desejo, e por ser tão forte quanto o meu, compreendes que devo parar, pois tenho medo de não me controlar e... ferir-te! – disse ofegante.
- Sei que não faria isso. Tão prazerosa é tua boca para mim, quanto afirmas ser a minha para você. Eu o amo demais! Quero fazer parte da tua essência... ser como és! Se não podes mais ser humano, deixe-me ser ...
- Não continue! Já é tentador demais estar aqui e beijá-la sem devorar-te! O meu desejo é tão grande que chega a doer... dentro de mim! – sussurrava, novamente encostando sua boca em meus lábios.
- Também é doloroso saber que quero ser tua e me impedes. Posso estar louca em dizer isso, mas sei que não iria morrer. Poderia renascer nesta criatura em que te transformaste...
- Eu sei o quanto sofro por ser assim! Não te condenaria a uma eternidade de sofrimento para satisfazer o desejo que nos toma momentaneamente.
Frustrada com a decisão de Edmond, eu pensei um pouco e optei por perguntar-lhe algo que iria, possivelmente, resolver aquele impasse.
- Queres então provar-me apenas um pouco? Refiro-me... ao meu sangue.
- Como pensas em fazer isso? És mais insana que eu poderia supor! Sinto-me mais ser tua presa, que o contrário! – disse com um sorriso.
- Você realmente me deseja?
- Não perguntes o que já tens a resposta! Desejo-te mais que tudo!
Não tive mais dúvidas e propositalmente cortei-me próximo ao pulso, superficialmente, com um dos alfinetes que seguravam o meu vestido ainda jogado ao chão. A adrenalina que estava sentindo foi tanta que confesso não ter percebido nenhuma dor ao praticar aquele ato. Alguns fios de sangue escorreram pelo meu braço, mas e foram o suficiente para que eu o aproximasse lentamente de sua boca, que já ansiava por isso.
Controlando-se para não me morder, lambeu suavemente o líquido que eu lhe escorria à boca por minha própria vontade. Nunca pensei que descreveria a sensação que tive naquele momento. Estava vulnerável a ser completamente devorada até à morte e, mesmo assim, sentia deleite naquela experiência única. A sensação de que se alimentava de mim ao me sugar, como um ser que necessita de outro para sobreviver, me deixou num estado de tensão e prazer que nem ao menos poderia definir em palavras.
Aparentemente assustador e perigoso, não havia nada de macabro no que estava acontecendo. Deixei, apenas que bebesse um pouco do que não faria falta alguma para minha existência, mas que provocaria uma imensurável onda de prazer na criatura por quem eu me apaixonei.
Em meu íntimo sabia que não me mataria. Era guiada por meus instintos também. Sempre fui tão proba e recatada que certamente nunca havia imaginado passar por isso. Não precisou mais que alguns segundos para que ele interrompesse o que estava fazendo e me jogasse sobre a cama, completamente tomado por um ânimo incontrolável. E naquela noite, a única e infeliz morte havia sido a de Gerard.
CAPÍTULO 3
Edmond e eu permanecemos deitados por muito tempo. Alterávamos longas conversas sobre meus poucos anos de vida e sobre o seu longo passado. Descrevia o que havia presenciado em mais de três séculos de existência, suas aventuras e sofrimentos.
Contou-me coisas terríveis que despertavam sua repugnância para com a humanidade. Sobre a aniquilação de centenas de humanos com a peste negra. As cenas de violência que presenciou durante a Inquisição. A injustiça de julgamentos contra as mulheres acusadas de bruxaria. A tirania dos reis absolutistas. A fome, misérias, guerras, mesmo aquelas em nome de um Deus! Eu ficava fascinada com as suas histórias. Às vezes, nem pareciam fazer parte do mesmo mundo que eu. Era deslumbrante e terrível demais tudo que dizia!
Também me contou coisas alegres que havia vivido, principalmente enquanto era humano. E de como havia se tornado vampiro, então perguntei-lhe:
- Nunca soube da existência real de vampiros sobre a terra. Acreditei apenas em suas lendas, mas nunca pude imaginar que Deus permitiria que seres assim pudessem coexistir entre nós. Os que são? De onde vieram? Existe mesmo um anjo do mal?
- Há muitas coisas que não sabes ainda, Gabrielle. Coisas que um dia terei a oportunidade de contar-lhe, mas, por ora, basta saber que existem seres que convivem diariamente entre nós sem que saibamos ao certo suas origens, ou espécies. Existem entidades boas e as que plantam maldades. O importante é saber que não interessa o que semeiam, o mais relevante é aceitar a criatura voltada para a luz, ou voltada para a escuridão que habita em nossas almas. O universo está repleto de coisas que até nossa imaginação não alcançaria, mas não precisa temer. Você possui algo que nenhuma criatura das trevas ousaria atingir: seu coração. Ele é puro. Tens boa índole e és fortemente inclinada para o bem. Humanos assim, dificilmente são atingidos, mesmo em seus momentos de fraqueza. Um coração impuro só precisa de um conselho, ou incitação para cometer crueldades. É onde habita os seres cruéis que acreditas. O demônio, de fato não existe. Não como sempre te ensinaram a crer. Ele é, ou está em nossas escolhas e vocações, se para o bem, ou para o mal. A hipocrisia, a soberba e a ignorância dos homens talvez sejam os piores demônios da humanidade!
- Parece ser tão sábio e não me parece ser alguém ruim, ou cruel, pelo contrário você lembra... um anjo!
- Insistes em acreditar em minha santidade, mesmo sabendo que acabo de matar um ser criado pelo teu Deus? - disse com um olhar carinhoso - Não, minha querida, não sou anjo, como já disse. Sou apenas uma criatura condenada a viver eternamente num mundo de provações para os homens e de eterno carma para mim. Você sabe que um dia irá morrer, mas eu tenho certeza que ainda estarei aqui, mesmo no fim dos tempos... Por que as coisas precisam ser assim? Eu não sei. Não acreditava sequer que Deus pudesse olhar para mim, ou que ainda pudesse chamar de alma o espectro que se move dentro do meu corpo. Não poderia supor que algo bom pudesse me acontecer e que ainda voltaria a ter esperanças de ser salvo, até conhecer você. Acho que posso chamar a ti de meu anjo e não o contrário!
- Enxergo em teu espírito uma luz que até você desconhece. Não és a criatura tão vil que acreditas ser. Tenho certeza do que digo, pois apesar de tudo tens consciência dos seus erros e sofres muito por eles. Como bem disse, tantos outros que são humanos e matam sem piedade! Não justifico as tuas atitudes, mas compreendo-te, meu amor! És bom, sei disso!
- Ouvindo você falar assim, até acredito que podes ter alguma razão. Muito mito criou-se em torno do que somos. Existem vampiros desde a criação dos homens, mas poucos sabem, pois não seria prudente esta revelação. Contudo, o poder que adquirimos torna, alguns de nós, seres frios e sanguinários, mas existem muitos que não se deixaram seduzir pela ostentação da dádiva da imortalidade, ou superioridade física e intelectual em relação aos humanos.
- Mas, afinal de que podes sobreviver se não dos assassinatos de inocentes?
- Não me alimento apenas de sangue humano. Tenho outras fontes. Assim como os humanos devoram as carnes de animais, devoro-lhes apenas o sangue, pois só preciso dele para me manter forte. O meu primitivo instinto não me deixa completamente alheio aos assassinatos, mas procuro canalizar esse ímpeto para castigar a quem julgo merecer e nunca o faria com criaturas frágeis como as crianças, idosos, doentes... ou boas, como você! Não julgo ser nobre o que faço, mas acho que sou uma espécie de... – pensou por alguns segundos e completou - Robin de Locksley, mais conhecido por Robin Hood! Já ouviu falar dele? Viveu no século XIII, na Inglaterra...
- Sim, já ouvi falar de suas lendas, mas nunca soube se são verdadeiras. Roubava riquezas dos nobres para distribuí-las aos miseráveis, não é isso? Estou certa?
- Exato. Também não eram de todo corretas as suas atitudes, mas quem poderia julgá-lo em uma época de tantas injustiças sociais. Injustiças que se vivem até hoje! Portanto, não roubo dinheiro, mas tiro deste mundo os malfeitores que cruzarem o meu caminho, como os dois homens que lhe atacaram no riacho, por exemplo – puxou-me mais para perto e olhou-me fixamente para completar o que dizia – Nunca serás de mais ninguém, Gabrielle! Eu prometo que serei só teu e que serás só minha! Uma das minhas inúmeras fraquezas é o ciúme e só agora posso sentir o quanto isso me domina!
Edmond abaixou o rosto com um ar de tristeza e em seguida completou:
- Eu sinto muito por não haver me controlado! É por isso que me mantive afastado, entendes agora? Como podes amar uma criatura assim? Tu que és tão bela... tão cheia de bondade, que chega a assemelhar-se às criaturas celestiais!
- Acreditava que seres como você não poderiam sequer citar o nome dos santos. Fugiriam da luz do sol, cruzes sagradas... Temeriam estacas, ou alhos... mas falas de Deus e dos anjos com certa intimidade! Como se isso não fosse ameaçador para tua espécie!
Edmond riu ao ouvir minhas palavras.
- Posso lhe garantir que não sou um representante do mal entre os homens. Isto já existe, desde a própria criação, dentro de todos nós. Não se personifica o mal em um ser, ou em alguns seres apenas, pois a maldade está infiltrada nos atos de violência que se vivencia todos os dias. A ignorância dos brutos, a tirania dos poderosos, a exploração dos fracos e a crueldade com os doentes, tudo faz parte da natureza de quem realmente torna-se um monstro pouco a pouco. As coisas não são exatamente iguais ao que dizem as lendas. Não temo a Deus! Pelo contrário, gostaria de voltar a ser seu amigo, seu filho, se assim você preferir chamar todos os humanos criados por Ele. As coisas sagradas não me intimidam e nem mesmo intimidam aqueles que são verdadeiramente maus! Senão porque existem tantos pecadores que matam em nome de Deus e nem por isso temem a cruz? O exorcismo é algo que os homens podem fazer por si mesmos. O verdadeiro arrependimento é o mais poderoso dos exorcismos conhecidos na Terra. Só assim se tira um mal de dentro, ou perto de si. Independente do Deus que acreditas!
Parou de falar por alguns instantes completou:
- Só quero que entendas que só se afasta um mal, seja ele uma criatura das trevas, ou mesmo o que habita dentro de cada um de nós, com o nosso livre arbítrio! Não precisas de estacas, amuletos, cruzes e água benta... Chega a ser tolice acreditar que as forças do bem estariam em objetos inanimados! E quanto a luz do dia, ela não é tão mortal para mim, apenas me enfraquece. Evito-a, mas não a temo.
- O que te mataria então?
- Há várias formas e rituais conhecidos pelas bruxas e outros seres. O mais comum é arrancar o coração de um vampiro e queimá-lo. A carência de sangue por um período muito longo também traria conseqüências letais...
- Nossa! Morreria se fizessem isso contigo!
- Não te preocupes! Passei por muitos duelos e sobrevivi a todos. Contudo, se me deixasse, ou traísse, doeria tanto que o arrancaria de meu próprio peito com minhas mãos!
- Nunca mais repita isso! Nunca duvide do que sinto por você. Ainda que eu morra antes de ti, mesmo que renasça em várias vidas, não duvide do que sinto por você e não desista de mim! – supliquei.
- Não irei duvidar, nem te esquecer! A barreira que construí em torno do meu coração, desde que perdi... – interrompeu o que ia dizer e continuou - É como se tivesse despertado de um sono frio e escuro de muitos anos...
- Continues a dizer. Quem você perdeu Edmond? Já havia estado apaixonado antes? - interrompi-o, bruscamente.
- Sim. Mas foi há muitos anos atrás e prefiro não recordar os momentos que vivi. Embora ela me faça lembrar muito sua aparência, possuem corações bem distintos!
Parou um instante de falar e perguntou-me:
- Por que me olhas assim?
Fitava-o com um olhar deslumbrado e apaixonado. Parecia não acreditar no que estava acontecendo comigo!
- Eu o amo – respondi-lhe ainda com o mesmo olhar.
Enternecido com o que ouviu, Edmond aproximou-se dos meus ouvidos e sussurrou:
- Eu a amo, mais que tudo!
- Gostaria de lhe perguntar algo que a tempo me intriga. Por que sempre os lírios? Nunca rosas, ou qualquer outra flor... Sempre me ofereces lírios em nossos encontros. Aprecio sua beleza, mas sei que deve existir um significado maior.
- Porque foram eles que presenciaram o momento em que te encontrei. Acredito que não foi por acaso que estavam ali, prontos para serem recolhidos e entregues a você. Os lírios significam muitas coisas, dentre elas, inocência, fertilidade, beleza, pureza e... morte também.
- Morte! Acha mesmo isso? São tão alegres, angelicais... – comentei sentindo certo presságio.
- Os lírios são as flores milenares que desde os tempos mais antigos são símbolos de muitas divindades gregas, romanas... São relacionados à santidades, aos mártires... e também são dedicados a jovens inocentes, em seus túmulos.
Sabendo dessas histórias, preferi mudar logo de assunto. Em seguida repetimos outras tantas vezes o mesmo ritual de sangue e amor. Sentia-me mais feliz e plena como nunca poderia imaginar! Conhecê-lo pouco a pouco foi sendo uma aventura excitante e as descobertas faziam com que eu me sentisse mais segura e confiante de que havia feito a escolha certa ao me envolver com um vampiro!
CAPÍTULO 4
Nunca soube o que Edmond havia feito com o corpo de Gerard. Simplesmente havia desaparecido. Algumas semanas após as minhas núpcias, os vizinhos e parentes, inclusive o meu pai, deram pela falta do meu marido, por isso precisei inventar-lhes que o mesmo havia fugido com uma de suas amantes, logo, não me sentia comprometida com ele.
Passei a viver com quem realmente estava apaixonada, sem que ninguém desconfiasse de sua verdadeira natureza. Mas, não era mais bem vista pelos vizinhos e nem por minha família. Nenhuma casa se abriria mais para mim a partir do momento em que passei a coabitar em pecado com um homem. Bem sabia disso. Muito pouco me importava todos os comentários e julgamentos a meu respeito. Até os comerciantes recusavam-se a vender mercadorias para nós. “Hipócritas preconceituosos!” – respondia-lhes, em pensamento, sempre que me davam as costas.
Edmond era um homem de posses e certamente não nos fez falta alguma o embargo da propriedade do meu ex-marido, pelo meu próprio pai. Vivíamos muito bem em seu confortável “chateau”, a certa distância da aldeia em que eu habitava antes. Como era completamente ermo, foi um lugar perfeito para que pudéssemos nos esconder de todos e viver em paz.
Edmond e eu nos completávamos e não sentia falta de mais nada. Mesmo ainda sendo humana e ele um vampiro, conseguíamos manter relações amorosas sem que ele me machucasse. Com o tempo foi tornando-se relativamente fácil para ele manter o autocontrole sobre seus instintos. E para mim cada vez mais me agradava a idéia de ser como ele.
Certa noite quando estávamos deitados juntos, perguntei-lhe, inusitadamente, se deixaria que experimentasse o seu sangue também.
- É o que deseja realmente?
- Transformar-me-ia desta maneira?
- Não. Seria preciso que antes eu a mordesse e só então provaria meu sangue para que a transformação se completasse.
- Posso provar-lhe sem que te sintas culpado então?
Sem responder, Edmond também se cortou e apanhou com seus dedos uma gota de seu próprio sangue para que eu experimentasse. Tenho certeza que o surpreendi quando ao invés de aceitar a gota que me oferecia, puxei-lhe o braço e suguei o seu corte, tal como ele costumava fazer em mim.
- Não posso acreditar que tenhas coragem para fazer isso, Gabrielle! – exclamou embora demonstrasse também certo delírio.
- Faria qualquer coisa para te agradar, meu amor! Isso me satisfaz também!
Puxou-me de onde estava e novamente nos amamos. Era tudo tão mágico e sublime! Parecia um sonho estar ao seu lado.
***
Algum tempo depois, apresentou-me seus únicos amigos, também vampiros, mas que manteriam segredo para que os outros de sua espécie não me achassem. A mulher era Agnes, sua antiga cunhada, pois havia se casado com seu irmão, ainda há séculos atrás; o outro, Pierre, era um conhecido de apenas algumas décadas e havia se envolvido amorosamente com Agnes, após ela o ter transformado.
Edmond fazia sentir-me segura mesmo se estivesse numa cova, rodeada por leões famintos. Contudo, os moradores da região não aceitavam e nunca aceitariam o nosso “pecado”. Por várias vezes fui apedrejada quando ousava sair, mas evitava que Edmond soubesse para não provocar-lhe a ira.
O cerco contra nós dois fechava-se cada vez mais. A intolerância e o moralismo desenfreado daqueles infelizes não permitiam que eu vivesse com um homem estranho, estando casada com outro. Mesmo habitando o lugar mais distante do vilarejo, era pouco para os que se sentiam ofendidos.
Após tentarem colocar fogo em nossa casa, Edmond percebeu que eu estava me arriscando demais, em viver ali com ele, e viajou para comprar outro chateau, num lugar o mais distante possível para nós dois.
Fiquei sob a companhia de Agnes e Pierre esses tempos e foi justamente durante a sua ausência que descobri crescer em meu ventre uma criança que, diferente das outras completamente humanas, evoluía rapidamente em semanas. Logo, que notei o meu estado, já haviam se passado dois terços do período completo para o nascimento.
Agnes me explicou tudo sobre a gestação peculiar dos vampiros, mas também se sentia insegura, pois não sabia explicar como uma humana daria à luz a uma criança vampira. “Haveria de dar tudo certo para que o meu bebê nascesse lindo e saudável. Edmond ficaria muito feliz com a novidade que lhe aguardava!” – dizia-me o tempo todo
Porém, dias depois, pude experimentar da vil intolerância humana e da maldade que habitava no coração dos homens, tal como Edmond havia prevenido.
Percebendo meu estado gestacional e sem mais suportar a indecência, que para todos eu representava, os camponeses não havia mais do que me acusar senão de bruxaria. Os rumores chegaram à corte, especialmente ao clero, que ainda era implacável com mulheres na minha condição.
Mesmo sob a proteção de Agnes e Pierre, conseguiram me capturar durante um breve momento que eu estava sozinha em meus aposentos. Após invadirem a mansão fui arrastada em praça pública até um esdrúxulo julgamento e, mesmo não sendo mais tão comum a morte de mulheres consideradas praticantes de feitiçaria, fui condenada a morte.
Gritei por misericórdia para que pensassem no inocente em meu ventre, mas foi em vão, pois ainda juraram condenar o meu amante, caso ele aparecesse. Fui levada para uma espécie de calabouço e após vários atos de violência física e sexual, fui atirada em um poço e trancafiada até a morte para que pudesse “refletir sobre os meus pecados e quem sabe assim obter o perdão divino” – como disseram os meus assassinos.
***
Meu espírito ainda permanecia sobre a Terra e pude vivenciar a dor do meu pobre Edmond após o seu regresso. Agnes e Pierre lhe contaram tudo e não previram outra reação, senão a de seu profundo desespero. Em seguida, incitado pelo ódio e revolta, percorreu todas as regiões para descobrir onde meu corpo foi deixado. Com a ajuda de outras criaturas que não precisavam de qualquer pretexto para cometer assassinatos, pôs fim a vida dos que me fizeram mal.
Tentei intervir para que ele não se condenasse ainda mais com tais sentimentos e atitudes, mas a sua dor era tão forte que podia senti-la dentro de mim; e sofria como ele também. Estava revoltada não apenas por minha morte, mas também por nosso filho que não deveria ter pagado por nada!
A raiva tornou Edmond ainda mais forte e impiedoso com os meus carrascos. Não pude impedir que cometesse os crimes, mas, por um momento, consegui me aproximar de seu coração e intervir em seus pensamentos para que não fizesse mais nada, apenas encontrasse os meus restos, já que isso lhe era tão importante. Em meio a seus pesadelos, obtive a chance de intervir através de um sonho e guiá-lo ao lugar onde meu corpo jazia.
Acompanhado de Agnes e Pierre, encontrou o local exato do poço abandonado no qual fui atirada. Eu não saí um só instante junto aos seus pensamentos. Estava ali para evitar que cometesse qualquer insanidade. Jamais esquecerei o desespero e expressão de dor profunda que sentiu ao encontrar apenas o que havia restado do meu cadáver. Olhou-o por alguns minutos e completamente emocionado esbravejou:
- Deus, porque a tiraste de mim? Por que alimentou minhas esperanças de merecer alguma misericórdia? Já havia me conformado em ser a criatura que sou, não precisava de outros motivos para odiar-me ainda mais! Não deveria tê-la deixado! Por que eu a deixei sozinha? Por que não a transformei como tanto me pedia? Poderia ter evitado que se fosse junto com o nosso filho! - gritava e gemia de desespero ao desabafar sua revolta.
Agnes e Pierre assistiam a tudo sem pronunciar uma só palavra, apenas olhavam aquela cena dramática e, comovidos, preferiram não interromper o amigo que chorava compulsivamente.
- Ah! Que castigo cruel me destes! Nem ao menos poderei ir-me junto contigo, meu amor! Condena-me a ficar aqui sem você por toda eternidade! Como puderam fazer isso com uma criatura tão inocente! Era essa a maldade que eu tanto quis te proteger! Foi a crueldade e a intolerância deste mundo que a arrancaram dos meus braços para sempre! Por que tiveste que partir e tornar o meu mundo tão sombrio novamente? – após uma breve pausa ele cerrou os dentes e, trêmulo de raiva, prosseguiu em desabafo – Só tenho meu ódio agora! Odeio ainda mais a humanidade! Haverá desejo de vingança em cada sopro de vida que esta eternidade maldita me reserva!
Aquelas palavras de sofrimento entravam em mim como punhais e me doíam muito mais que qualquer violência que já havia sentido. Como era doloroso vê-lo chorar e saber que não podia abraçá-lo e dizer que estava ali ao seu lado.
Agnes interrompeu o longo silêncio que pairou alguns instantes e, como que tivesse sentido minha dor também, confortou Edmond com um abraço e lembrou-lhe:
- Sabes que ela não gostaria que estivesse assim, ou falasse essas coisas. Jamais culpe outra circunstância senão o destino que ordenou que se encontrassem numa época de tanta intolerância. Acredite que no futuro as coisas podem mudar. Estaremos aqui em nosso eterno limbo, mas ela poderá voltar um dia, Edmond, não esqueça disso! Sabe melhor que eu, pois foi você quem me ensinou a acreditar nas reencarnações humanas.
Edmond, ouvindo tais conselhos, fraquejou em sua ira e parecia acalmar-se aos poucos, deixando que as palavras de Agnes chegassem ao seu coração. Acho que se lembrou que eu havia lhe dito para não desistir de ser salvo. Parecia que a esperança de reencontrar-me um dia vinha-lhe a mente, como uma pequena luz que começava a brilhar naquela escuridão em que se encontrava.
- Ela foi tirada de mim sem que eu pudesse ao menos despedir-me! Fecho os olhos e posso imaginar o seu choro, o seu desespero para que eu viesse buscá-la, mas eu falhei! Eu falhei! Prometi que nada a aconteceria, mas não estava junto dela quando mais precisou de mim! Você pode estar certa, Agnes: não importa o tempo que precise esperar, eu vou continuar aqui à espera de Gabrielle!
Após perceber e sentir que Edmond havia voltado a si, eu pude deixar a Terra e seguir os que me chamavam. Contudo, ainda guardava a preocupação quanto aos atos de cólera que o levaram a matar os meus assassinos. O sentimento de perdão aos meus algozes, que tanto gostaria de sentir em seu coração, eu ainda não pude, mas desejava voltar e continuar o ajudando a caminhar e evoluir junto comigo. Acreditava nele e em tudo que pude ler em seu coração e sabia que possuía uma essência verdadeiramente boa e humana.
Concentrei minhas energias para demonstrar-lhe a minha presença, através do aroma das nossas flores preferidas. Ao sentir o perfume dos lírios que sempre me presenteava, disse-lhe, em pensamento, antes de partir definitivamente:
- Mesmo quando se sentir sozinho, eu vou estar em seu coração! Somos parte um do outro! Ainda que não lembres mais, nesses muitos anos de tua existência futura aqui na Terra, vou ainda estar contigo. Até breve.
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